Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7


cas educacionais paulistas focaliza-
das no avaliacionismo, na ideologia
da aprendizagem^5 e na responsabili-
zação das escolas por resultados,
chegou a um ponto de saturação na
pandemia: se a precariedade das uni-
dades escolares e a insuficiência de
recursos financeiros continuarem
sendo abstraídas, a abertura das es-
colas colocará em risco a vida de mi-
lhões de pessoas.
Chama atenção a rapidez e a “faci-
lidade” com que a Seduc-SP toma de-
cisões a respeito da vida de milhares
de escolas e de milhões de estudantes
e profissionais da educação. A situa-
ção contrasta com a de universidades
como USP, Unicamp, Unesp, UFABC,
Unifesp, UFSCar e com o Instituto Fe-
deral de São Paulo, que também sus-
penderam suas aulas presenciais em
março e decidiram pela continuidade
de suas atividades de ensino de forma
remota. Nenhuma delas, por outro la-
do, tomou a decisão de abrir as portas
no segundo semestre de 2020.
Tamanha disparidade entre os ce-
nários de “retomada” nas universida-
des e nas escolas públicas de educa-
ção básica dentro de um mesmo
estado revela que essas instituições
não apenas possuem funções sociais
diferentes – o que é esperado –, mas
que estão separadas por um fosso
profundo em termos de status social
e autonomia decisória.
A escola pública atende os seg-
mentos populares, os filhos dos tra-
balhadores que, com a f lexibilização
da quarentena, precisam voltar ao
trabalho presencial. A “normalidade”
econômica não pode ser produzida
sem os trabalhadores e sem a escola
pública que recebe seus filhos. Por is-
so, a abertura das escolas não está se-
parada da f lexibilização da quarente-
na. Ela é um de seus principais
sustentáculos. E, diferentemente do
que ocorre nas instituições de ensino
superior, ela está sendo decidida não
no nível do território e das comunida-
des escolares, mas no dos gabinetes.


CADÊ A COMUNIDADE
ESCOLAR QUE ESTAVA AQUI?
A comunidade escolar é o espaço em
que o processo educacional ganha
concretude, em que se dá o encontro
entre profissionais da educação, es-
tudantes e suas famílias: a socializa-
ção, o crescimento, o conf lito, a timi-
dez, a discriminação, o conhecimento,
a descoberta, a rejeição do corpo, a
paixão, a frustração, as amizades, a
rejeição, a matemática, a cidadania, o
sonho, os projetos. Enfim, a produção
da escola. A suspensão das atividades
presenciais acarretou prejuízos para
crianças, adolescentes e profissionais
da educação precisamente porque
impediu toda essa convivência vital,
educativa, deixando as pessoas mais


isoladas e sozinhas. Foi uma perda,
sem dúvida, mas foi a escolha mais
acertada em defesa da vida.
Os modelos educacionais neotec-
nicistas dos gestores e especialistas
do setor empresarial que defendem a
abertura das escolas – e tão bem ilus-
trados no Parecer n. 11/2020 do CNE


  • estão de costas para as comunida-
    des escolares e os complexos proces-
    sos de produção da escola. Talvez por
    isso mesmo as expressões “comuni-
    dade” ou “comunidade escolar” apa-
    reçam no documento do CNE apenas
    como objetos da ação das autoridades
    educacionais, e não como agentes de-
    cisórios dos sistemas de ensino. Isso
    fica bem claro em uma das recomen-
    dações do CNE: “Comunicação: o
    planejamento da reabertura deve ser
    acompanhado por intensa comunica-
    ção com as famílias, os alunos, os
    professores e profissionais de educa-
    ção, explicando com clareza os crité-
    rios adotados no retorno gradual das
    escolas e os cuidados com as questões
    de segurança sanitária” (p. 11-12).
    Quando as escolas são tratadas
    como meras linhas de transmissão e
    obediência a normas e ordens exóge-
    nas aos seus propósitos,^6 interdita-se
    a dimensão humana e criativa da
    educação. É por isso que as políticas
    educacionais centralizadas fragili-
    zam as comunidades escolares. Os
    dois instrumentos mais importantes
    para a construção da identidade des-
    sas comunidades – o Projeto Político-
    -Pedagógico e os Conselhos de Escola

  • perdem a razão de ser quando seu
    “devir” é definido do lado de fora, pela
    administração central. Escolas com
    identidade própria, com autonomia e
    com professores e estudantes ques-
    tionadores e propositivos são, pela


mesma razão, um entrave à gestão
centralizada e tecnocrática. É preciso
reconhecer, além disso, que mesmo
uma comunidade escolar atuante, es-
tudiosa e produtora de seu próprio
cotidiano não consegue fazer muita
coisa sem recursos humanos, sem
condições institucionais e sem um fi-
nanciamento educacional adequado.
Mas, como nem a escola pública
nem as comunidades escolares são
entidades monolíticas, também há
aquelas que estão mobilizadas em
defesa da vida. Um manifesto produ-
zido por escolas do extremo leste da
cidade de São Paulo (regiões de
Guaianases, Cidade Tiradentes e La-
jeado), por exemplo, expressa o dese-
jo de voltar, mas também a apreensão
com a falta de capacidade do estado
de garantir a proteção da vida em um
eventual retorno: “Queremos, sim,
voltar às escolas, pois há um entendi-
mento geral de que as aulas remotas,
mesmo com o grande esforço dos
educadores, não atingem a maioria
de nossos alunos. Porém, não pode-
mos arriscar nossas vidas, de nossos
estudantes e de seus familiares, na
medida em que a comunidade médi-
ca, os cientistas e a OMS afirmam que
a escola [...] poderá se transformar
em grande propagadora do vírus”.^7
Desde março, quando começa-
mos a produzir textos e notas públi-
cas sobre a indução de desigualdades
educacionais durante a pandemia,
temos salientado que todas as solu-
ções precisam ser pensadas no nível
do território, por meio da articulação
dos atores locais.^8 Não há protocolo
ou diretriz “geral” que seja capaz de
atender às especificidades de cada
escola. São as comunidades escolares
que devem adaptar os protocolos às

suas necessidades. Se as famílias
com filhos nas escolas privadas po-
dem tomar a decisão individual de
não mandá-los para a escola, o mes-
mo nem sempre ocorre com as famí-
lias da escola pública. Para estas, é
fundamental poder contar com uma
rede de proteção comunitária no ní-
vel do bairro e da escola. Nos territó-
rios periféricos, são as redes de soli-
dariedade que vêm garantindo a
sobrevivência de muita gente.
Não são a “perda” de aprendiza-
gens ou o mau desempenho no Pisa^9
que motivam estudantes e professo-
res a querer voltar para a escola, e
sim uma enorme saudade desse es-
paço produtor de vida, de conheci-
mento e de laços sociais. Mas tudo
isso parece ter limite. Ao contrário
dos mantenedores das escolas priva-
das e dos reformadores empresariais
da educação, que veem a suspensão
das aulas apenas como um dano eco-
nômico ao país, uma massa de brasi-
leiros simplesmente se recusa a en-
xergar o “brilho do sol” da abertura
das escolas, sabendo que sua própria
vida é objeto de aposta em um jogo
de roleta-russa.

*Fernando Cássio é doutor em Ciências,
professor da Universidade Federal do ABC
(UFABC) e organizador de Educação contra
a barbárie: por escolas democráticas e pela
liberdade de ensinar (Boitempo); Ana Pau-
la Corti é socióloga, doutora em Educação
e professora do Instituto Federal de Educa-
ção, Ciência e Tecnologia de São Paulo
(IFSP). Os autores fazem parte da Rede Es-
cola Pública e Universidade (Repu).

1 Elida Oliveira, “Mais de 70% dos pais se recu-
sariam a enviar filhos para escola ainda em
julho e 40% só acreditam no retorno em 2021,
aponta levantamento”, G1, 16 jul. 2020.
2 Ver a Nota Técnica Recomendações para a
disponibilização e a coleta de dados sobre as
ações das redes de ensino relacionadas às
atividades educacionais durante a pandemia
da Covid-19, produzida em maio de 2020 por
Campanha Nacional pelo Direito à Educação,
Cedeca-Ceará, DiEPEE-UFABC e Rede Es-
cola Pública e Universidade.
3 Isabela Palhares, “Interrupção das aulas na
pandemia pode reduzir PIB brasileiro em até
23 %”, Folha de S.Paulo, 13 jun. 2020.
4 Esses protocolos podem ser encontrados em:
http://www.educacao.sp.gov.br/coronavirus.
5 Fernando Cássio e Silvio Carneiro, “É hora de
falar da educação como bem público”, Le
Monde Diplomatique Brasil, 20 maio 2020.
6 Ana Paula Corti e Fernando Cássio, “Por que
obedecemos?”, Le Monde Diplomatique Bra-
sil, 30 set. 2019.
7 “Publicação na íntegra do Manifesto pelo di-
reito à vida e à educação pública, assinado
por diversas unidades escolares de SP”, Es-
querda Diário, 15 jul. 2020.
8 Ver as notas públicas conjuntas produzidas
desde março de 2020 pela Rede Escola Pú-
blica e Universidade (Repu) e pelo Grupo Es-
cola Pública e Democrática (Gepud): http://www.
repu.com.br/mocoes-manifestos-e-notas-pu-
blicas. Ver também o Guia Covid-19 vol. 8:
reabertura das escolas, produzido pela Cam-
panha Nacional pelo Direito à Educação, dis-
ponível em: https://campanha.org.br/acervo/
guia-8-covid-19-reabertura-das-escolas.
9 Programme for International Student Assess-
ment (Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes).

© Tânia Rêgo/Agência Brasil

Abrir escolas implica mobilizar 1/4 da população a sair de casa todos os dias
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