Chomsky_Noam_-_lucro_ou_as_pessoas

(mariadeathaydes) #1

designados “homens responsáveis” de hoje. Os problemas básicos persistem, assumindo formas
sempre novas, suscitando novas medidas de controle e marginalização e conduzindo a novas formas
de luta popular.
Os chamados “acordos de livre comércio” são um desses dispositivos de enfraquecimento da
democracia. Eles são projetados para transferir a tomada de decisões que afetam a vida e as
aspirações das pessoas para o âmbito de tiranias privadas que operam em segredo, sem qualquer
supervisão ou controle público. Não surpreende que o público não goste delas. A oposição é quase
instintiva, um tributo ao cuidado que se toma para isolar a gentalha da informação e do
conhecimento relevantes.
A maior parte desse quadro é tacitamente admitida. Acabamos de testemunhar um outro
exemplo: o empenho com que se tentou, nos últimos meses, aprovar o Fast Track, legislação que
permitiria ao Executivo negociar acordos comerciais diretamente, sem a supervisão do Congresso
nem o conhecimento do público; um mero “sim” ou “não” bastaria. O Fast Track gozava de apoio
quase unânime no interior dos sistemas de poder, mas, como observou pesarosamente o Wall Street
Journal, os seus adversários talvez tenham uma “arma definitiva”: a maioria da população. As
pessoas continuaram se opondo ao Fast Track apesar do bloqueio da mídia, acreditando
ingenuamente que precisam saber o que está acontecendo com elas e ter voz nas decisões. Da
mesma maneira, o NAFTA foi aprovado à revelia da oposição pública, que se manteve firme apesar
do apoio entusiástico e quase unânime do poder estatal e empresarial, incluindo a sua mídia, que
se recusou até mesmo a permitir que o principal adversário do tratado (o movimento organizado dos
trabalhadores) se expressasse, enquanto o denunciava por diversos delitos inventados.^72
O Fast Track foi pintado como uma questão de “livre mercado”, mas não é bem assim. O mais
ardente defensor do “livre mercado” se oporia radicalmente ao Fast Track se acreditasse na
democracia, pois é disso que se trata. Fora isso, os acordos projetados dificilmente poderiam, mais
do que o NAFTA e o GATT/OMC, ser qualificados de acordos de livre comércio, questão que já
tivemos oportunidade de discutir.
A razão oficial do Fast Track foi expressa pelo Delegado da Representação Comercial dos
Estados Unidos, Jeffrey Lang: “O princípio básico das negociações é o de que somente urna pessoa
[o Presidente] pode negociar em nome dos Estados Unidos”.^73 O papel do Congresso é apenas
endossar, e o do público, ficar olhando – de preferência para o outro lado.
O “princípio básico” é bastante real, mas seu alcance é pequeno. Vale para o comércio, não
para outras questões: direitos humanos, por exemplo. Aqui o princípio é oposto: deve-se dar aos
membros do Congresso todas as oportunidades de assegurar que os Estados Unidos mantenham
seu índice de não-ratificação de acordos, um dos piores do mundo. As poucas convenções que
chegaram ao Congresso ficaram anos aguardando votação, e as que chegaram a ser sancionadas
foram sobrecarregadas de condições que as tornam inoperantes nos Estados Unidos; não são “auto-
executáveis” e possuem ressalvas específicas.
Comércio é urna coisa; tortura e direitos das mulheres e crianças, outra.
Essa distinção tem amplas implicações. A China é ameaçada com severas sanções por não
aderir às exigências protecionistas de Washington e por intrometer-se na punição aos líbios. Mas o
terror e a tortura provocam urna resposta diferente: nesse caso, as sanções seriam
“contraproducentes”. Elas “tolheriam nossos esforços para estender a cruzada pelos direitos
humanos ao povo sofredor da China e seus territórios, da mesma forma corno a relutância em

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