Chomsky_Noam_-_lucro_ou_as_pessoas

(mariadeathaydes) #1

desmantelamento da estrutura inteira e das instituições ilegítimas sobre as quais ela repousa. Esse
é um problema para a organização popular e para a ação, não para palavras.
Aqui se poderia levantar a ressalva de alguns críticos do AMI (eu, por exemplo). Os textos
explicam detalhadamente os direitos dos “investidores”, mas não os dos cidadãos, que são
reduzidos na mesma proporção. Os críticos, em conseqüência, chamam-no de “acordo sobre os
direitos do investidor”, o que é bastante verdadeiro, mas enganoso. Afinal, quem são os
“investidores”?
Em 1997, metade das ações pertencia à centésima parte mais rica dentre as famílias e quase
90 por cento às 10 por cento mais ricas (a concentração é ainda maior em se tratando de títulos e
depósitos, e equivalente para outros ativos); a inclusão dos planos de pensão leva a uma
distribuição apenas levemente mais uniforme entre a quinta parte das faIDl1ias mais ricas. O
entusiasmo despertado pela radical inflação de ativos dos últimos anos é compreensível. E depois
de um século de ativismo judicial, o controle efetivo da grande empresa é exercido por muito poucas
mãos institucionais e pessoais, com a chancela da lei.^89
Esta conversa inocente sobre “investidores” não deveria evocar as imagens de Joe Doakes,
mas as da Caterpillar Corporation, que acaba de derrotar uma greve importante apoiando-se no tão
louvado investimento externo: ela usou o extraordinário crescimento dos lucros que compartilha
com outros “públicos internos” para criar um excesso de capacidade no estrangeiro, debilitando
assim a luta dos trabalhadores de Illinois contra a erosão dos seus salários e suas condições de
trabalho. Esses desenvolvimentos resultam, em não pequena medida, da liberalização financeira
dos últimos vinte e cinco anos, que será intensificada pelo AMI; vale a pena notar também que esta
época de liberalização financeira tem sido também uma época de crescimento extraordinariamente
baixo (incluindo o boom atual, a recuperação mais fraca do pós-guerra), salários baixos, lucros
elevados – e, ocasionalmente, restrições comerciais impostas pelos ricos.
A expressão mais adequada para definir o AMI e iniciativas similares não é “acordo sobre os
direitos do investidor”, mas “acordo sobre os direitos da grande empresa”.
Os “investidores” relevantes são entidades de direito coletivo e não pessoas tal como
entendidas pelo senso comum e pela tradição anterior à criação do poder empresarial
contemporâneo pelo moderno ativismo judicial. Isso nos conduz a outra crítica. Os adversários do
AMI costumam dizer que os acordos concedem direitos excessivos às grandes empresas. Mas falar
de concessão de direitos excessivos ao rei, ao ditador e ao proprietário de escravos é retroceder
demais. Em vez de “tratado dos direitos da grande empresa” seria mais preciso chamar esse
instrumento de “tratado sobre o poder da grande empresa”, uma vez que não são nada claros os
motivos pelos quais essas instituições devam ter quaisquer direitos.
Quando a corporativização das sociedades capitalistas de estado ocorreu há um século, em
parte como resposta às enormes deficiências do mercado, os conservadores – uma estirpe quase
extinta hoje em dia – se opuseram a esse ataque com base nos princípios fundamentais do
liberalismo clássico. E com justa razão. Poderíamos relembrar a crítica de Adam Smith às
“sociedades por ações” do seu tempo, particularmente quando à administração era concedido um
certo nível de independência; e também a sua atitude em face da corrupção inerente ao poder
privado, à presumível “conspiração contra o público”, em sua visão mordaz, quando os homens de
negócios se encontram para almoçar, que dirá quando constroem entidades de direito coletivo e

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