A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
104 / A loucura da razão econômica

pressupõe a existência de um sistema legai que consagra direitos de propriedade
intelectual exclusivos sobre um conteúdo. Mas a possibilidade de produção e rea­
lização de valor e mais-valor só entra em cena quando uma editora organizada co­
mo uma empresa capitalista imprime Paraíso perdido na forma-mercadoria livro.
A realização do valor e do mais-valor cristalizados no livro enquanto mercadoria
depende, no entanto, de alguém em algum lugar sentir a vontade, a necessidade
ou o desejo de adquirir tal livro, amparado pela capacidade de pagar por ele.
Mas não se trata de um livro qualquer, e sim de um livro com o conteúdo único
e singular de Paraíso perdido. A singularidade desse conteúdo pode permitir (e
geralmente é isso o que ocorre) que se cobre um preço monopólico e se extraia
uma renda monopólica muito acima daquela assegurada pelo conteúdo laborai do
livro enquanto objeto físico. Ademais, se for uma primeira edição, o livro pode ser
vendido como objeto de coleção por um preço astronômico.
E isso o que frequentemente confunde os capitalistas cognitivos, porque parece
que há algo no trabalho intelectual e cultural que torna seu produto único e ex­
cepcional, na medida em que o preço parece aumentar por meio da adição de algo
chamado “valor de reputação”, que não tem nada a ver com o conteúdo laborai10.
Por outro lado, não há nenhum valor ou mais-valor se o livro permanecer guar­
dado num armazém, acumulando poeira. Milton, portanto, criou a condição de
possibilidade para produção de valor e extração de uma renda monopólica quando
escreveu Paraíso perdido, mas foram ainda necessários vários passos subsequentes
até que essa condição de possibilidade se realizasse pela circulação do capital.
O mundo está repleto de textos aguardando uma editora que os publique. Seria
potencialmente ilimitado atribuir-lhes um preço e colocá-los para circular em mer­
cados de propriedade intelectual. Mas isso não contribui para a produção de valor
e mais-valor, apenas aguça a contradição entre o valor e sua expressão monetária.
Nesse processo, suga-se ainda mais valor do processo de circulação do capital. O
mercado de direitos de propriedade intelectual e objetos de coleção pode se expan­
dir rapidamente, com efeitos negativos para a produção e a acumulação de valor.
Reduzir os impostos cobrados dos ultrarricos pode concentrar poder monetário
para investimento. Mas, se os ricos preferirem investir no mercado de arte (que
é o que geralmente ocorre), isso não contribuirá em nada para a criação de valor.
Desigualdades crescentes de renda e riqueza estão de fato associadas à estagnação
secular na produção de valor e a uma elevação crescente no preço dos Picassos.
Não valores (tais como aqueles gerados em redes peer-to-peer de computadores)
são gratuitamente convertidos em valores de uso para o capital por um simples
ato de cercamento, mercadorização e apropriação. O grau com que a produção de


10 Adam Arvidsson e Nicolai Peitersen, The Ethical Economy, cit.
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