Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

(embora possa receber esta função em sociedades que já aprenderam,
em outra parte, o que é a compra e a venda). É um ato de consciên-
cia, primitivo e indivisível, que faz apreender a filha ou irmã como
um valor oferecido e, reciprocamente, a filha e a irmã de outrem como
um valor exigível.
Esta falsa interpretação da origem da troca provém, conforme dis-
semos, do fato de Frazer ver na troca um fenômeno derivado, prove-
niente do cálculo e da reflexão. E é esta mesma perspectiva estreita-
mente histórica que devia levá-lo a procurar, fora da troca, a origem
da proibição do casamento entre os primos paralelos. Esta origem, se-
gundo ele, encontra-se na organização dualista, "praticamente universal"
na Austrália e "suficientemente prevalecente" na Melanésia para que se
possa admitir, também para esta região, a intervenção dela. Lembramos,
com efeito, que em um sistema de metades exogâmicas os primos pa-
ralelos pertencem necessariamente à mesma metade, e os primos cru-
zados a metades diferentes. No que diz respeito à Ásia, África e Amé-
rica, Frazer não hesita em deduzir a existência antiga da organização
dualista, comprovada, segundo ele, pela ampla difusão nessas regiões da
exogamia totêmica e do sistema classificatório de parentesco. '" Admita-
mos que, conforme sugere, a organização dualista tenha outrora se es-
tendido "pelo menos à metade, senão mesmo mais, da parte habitável
do globo". ~o Qual é sua origem? É, responde Frazer, impedir as uniões
consangüíneas, primeiramente entre irmãos e irmãs (primeira divisão do
grupo em duas classes), depois entre pais e filhos (segunda divisão do
grupo em duas classes), e finalmente entre primos cruzados (sistema
Aranda da Austrália, com divisão do grupo em oito classes matrimo-
niais). Não há dúvida que o sistema dualista termina por colocar os
irmãos e as irmãs na categoria de cônjuges proibidos, que a organiza-
ção em quatro classes matrimoniais dá o mesmo resultado para O sis-
tema dos dois pais (o pai em regime matrilinear e a mãe em regime
patrilinear) que não é atingido pela proibição em um sistema de duas
classes. Finalmente, que a organização em oito classes estenda aos pri-
mos cruzados a proibição que afeta os primos paralelos. Toda esta série
de afirmações funda-se no seguinte principio: "Em todo caso, estas con-
seqüências estão certamente incluídas no número dos resultados produ·
zidos pelas bipartições sucessivas, sendo legítimo inferir as intenções a
partir dos resultados"."


O mínimo que é possível dizer desse princípio é que constitui uma
conversão singularmente radical ao finalismo sociológico, mas esta con-
versão parece-nos ir tão além do que é possível admitir, quanto a ati-
tude estreitamente histórica da argumentação precedente tinha nos pa-
recido permanecer aquém. Para que se possa legitimamente inferir as
intenções a partir dos resultados, é preciso ao menos que haja uma
certa adequação entre os resultados verificados e as intenções supos-
tas. Assim, é possível que a divisão do grupo em quatro classes matri·
moniais tenha origem na tomada de consciência, clara ou confusa, de
um novo sistema de oposições, que substitui termos precedentemente
concebidos em uma relação de identidade.



  1. lbid., p.' 222-223.

  2. lbid., p. 223. 21. Ibid.


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