Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

~
! caráter de regra da proibição e sua universalidade. A universalidade ex-
prime s0nlente o fato da cl!ltura ter sempre e em toda a parte preen-
chido eSta forma vazia, assim como uma fonte jorrante preenche pri-
meiramente as depressões que cercam sua origem. Contentemo-nos por
·õra com esta verificaÇão, que a preencheu com o conteúdo que--i! a
Regra, substânCia ao mesmo tempo permanente e geral da cultura, sem
levantar ainda a questão de saber por que esta regra apresenta o caráter
geral de proibir certos graus de parentesco, e por que este caráter geral
aparece tão curiosamente diversificado.


o tato da regra, considerado de maneira inteiramente independente
de suas modalidades, constitui, com efeito, a própria essência da proi-
bição do incesto. Porque se a natureza abandona a aliança ao acaso e
ao arbitráriõ, é impossível à cultura não introduzir uma ordem, de qual·
quer espécie que seja, onde não existe nenhuma. O papel primordial da
cultura está em garantir a existência do grupo como grupo, e portanto
em substituir, neste domInio como em todos os outros, a organização
ao acaso.' A proibição do incesto constitui uma certa forma - e mes-
mo formaS muito diversas - de intervenção. Mas, antes de tudo, é
intervenção, ou, mais exatamente ainda, é a Intervenção.
Este problema da intervenção não se levanta somente no caso par-
ticular que nos ocupa. E: levantado, e resolvido afirmativamente, todas
as vezes que o grupo se defronta -cõri1 -a insuficiência ou a distribuição
àleatória de um valor cujo uso apresenta fundamental importãncla. Cer-
tas formas de racionamento são novas para nossa sociedade e criam uma
Impressão de surpresa em espíritos formados nas tradições do liberalis-
mo econômico. Por isso somos levados a ver na intervenção coletiva, que
se manifesta com relação a comodidades que desempenham um papel es-
sencial no gênero de vida próprio de nossa cultura, uma inovação ou-
sada e um tanto escandalosa. Por que o controle da distribuição e do
consumo tem por objeto a gasolina, acreditamos facilmente que sua fór-
mula pode justamente ser contemporânea do automóvel. Entretanto, não
é nada disso. O "regime do produto escasso" constitui um modelo de
extrema generalidade. Neste caso, como em muitos outros, os períOdOS
de crise aos quais, até uma data recente, nossa sociedade estava tam-
pouco habituada a enfrentar restauram somente, em uma forma crítica,
um estado de coisas que a sociedade primitiva considera mais ou menos
normal. Assim, o "regime do produto escasso", tal como se exprime nas
medidas de controle coletivo, é muito menos uma inovação devida às
condições da guerra moderna e ao caráter mundial de nossa economia
do que o ressurgimento de um conjunto de processos familiares às so-
ciedades primitivas, sem os quais a coesão do grupo estaria a todo o
instante comprometida.
E: impossível abordar o estudo das proibições do casamento se não
nos penetrarmos, desde o Inicio, do sentimento concreto de que os fatos
desse tipo não apresentam nenhum caráter excepcional, mas constituem
uma aplicação particular, a um domInio dado, de principios e métodos
encontrados todas as vezes que a existência física ou espiritaul do grupo


  1. Este ponto foi bem percebido por Porteus no que se refere à Austrália: S.
    D. Porteus, The Psychology 01 a PTimitive People, Nova Iorque-Londres 1931, p. 269.


72

Free download pdf