Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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nas sociedades mais primitivas explica perfeitamente estes caracteres
particulares.
Mesmo nessas sociedades, aliás, a monogamia não constitui regra ge-
raI. Os Nhambkwara seminômades do Brasil ocidental, que vivem da
colheita e da apanha durante a maior parte do ano, autorizam a poliga·
mia por parte de seus chefes e feiticeiros. O açambarcamento de duas,
três ou quatro esposas por um ou dois personagens importantes, num
bando que conta às vezes menos de vinte pessoas, obriga seus compa-
nheiros a fazer de uma coisa imposta e penosa uma ocasião de mérito
e de virtude. Este privilégio basta mesmo para .subverter o equilíbrio
natural dos sexos, pois os adolescentes machos às vezes não encontram
mais esposas disponíveis entre as mulheres de sua geração. Qualquer
que seja a solução dada ao problema - homossexualidade entre os
Nhambkwara, poliandria fraterna entre seus vizinhos setentrionais, os
Tupi·Cawahib - a escassez das esposas nem por isso deixa de se ma·
nifestar menos duramente numa sociedade que é contudo de predomi·
nância monógama. ~o Mas, mesmo em uma sociedade que aplicasse a mo-
nogamia de maneira rigorosa, as considerações do parágrafo precedente
conservariam seu valor, a saber, a tendência polígama profunda, cuja
existência pode ser admitida em todos os homens, faz aparecer sempre
insuficiente o número de mulheres dispOníveis. Acrescentemos que, mes,
l!!<?se as_mulheres são, em número,-equivalentes aos homens, nem to-
das são igualmente desejáveis - dando a este ~rmo um sentido._mais

. amplo que sua habitual conotação erótica - e que, por definição (con·
'forme judiciosamente observou Huneem seu célebre ensaio)" - as mu·
lheres mais desejáveis formam uma minoria. Por conseguinte, a demanda
de mulheres, atual ou virtualmente, está sempre em um estado de. de-
sequilíbrio e de
tens~o, ..
As considerações tiradas exclusivamente do estudo das relações en·
tre os sexos em nossa sociedade não poderiam levar a compreender o
caráter verdadeiramente trágico desse desequilíbrio nas sociedades pri·
mitivas. Suas implicações sexuais são secundárias. A sociedade primitiva,
com efeito, mais ainda que a nossa, dispõe de múltiplos meios para re·
solver este aspecto do problema. A homossexualidade em alguns grupos,
a poliandria e o empréstimo de mulheres em outros grupos, e final·
mente quase em toda a parte a extrema liberdade das relações pré-ma·
ritais, permitiriam aos adolescentes conseguir facilmente uma esposa, se
a função de esposa se limitasse às satisfações sexuais. Mas, como foi
freqüentemente observado,.o caslilllento, na maioria das sociedades.pri.
m..iU."as (assim como também - mas em grau menor - nas classes
rurais de nossa sociedade), apresenta uma importância completamente di·
ferente, não erótica mas econômica. A diferença entre a situação eco-
nômica do celibatário e a do homem casado em nossa sociedade reduz.
. ~e quase exclusivamente ao fato do primeiro dever mais freqüenterv.ente
.renovar seu guarda·roupa. A situação é inteiramente diversa nos grupos
20. C. Lévi·Strauss, La vIe familiale et sociale des IndJes Nambikwara, loe. cit.,·
The Tupi·Kawahib, em Handbook of South·Am.erican Indians, Bureau of Amer1can
Ethnology, Smithsonian Institution. Washington, D.C., vais. 3-4, 1948.
21. David Hume, La Dignité· de la nature humaine, em Essais moraux et politiques,
trad. frane. Amsterdam 1764, p. 189. Igualmente: "Se tudo neste mundo fosse exce·
lente, não haveria nada excelente". Diderot, Le Neveu de Rameau, CEuvres, ed. da
Plêiade, Paris 1935, p. 199.


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