Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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14 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


D


urante este ano terrível, foi
possível curtir um maravilhoso
verão. Voltar, por exemplo, para
casa na pacata Kansas City, em
um bairro onde proliferam os grama-
dos verdes bem aparados e os casa-
rões que se poderia jurar terem sido
construídos por barões. Passar tran-
quilamente o mês de agosto lendo ro-
mances, fazendo bricolagem, assis-
tindo a filmes antigos, bebendo
vinho do Missouri. Assim era possí-
vel esquecer que uma epidemia mor-
tal continuava se espalhando e que
um colapso econômico rondava esse
pequeno mundo próspero e pacífico,
pois de manhã o céu continuava a
brilhar e as f lores, a exalar seu perfu-
me; o trânsito permanecia f luido. Tu-
do convidava a montar na bicicleta,
percorrer as ciclovias silenciosas em
uma das mais belas cidades dos Esta-
dos Unidos. Porém, após o término
desse exercício, bastava se conectar
ao Twitter e ir buscar o jornal que o
entregador tinha acabado de arre-
messar na porta e então...
Bum! Tudo estava lá, como no dia
anterior: pânico, confusão, acusa-
ções, denúncias. Vídeos de indiví-
duos se insultando em público, pes-
soas loiras em trajes militares
brandindo armas de guerra, carros se
lançando sobre grupos de manifes-
tantes, personagens histéricos reci-
tando os textos fundadores da nação
tentando se agarrar à sua saúde men-
tal. A cada dia, novos sintomas de de-
generação e, além disso, a impressão
crescente de que ninguém mais en-
tendia de verdade o que estava se
passando.
Duas informações retiradas ao
acaso do jornal Kansas City Star de 13
de julho de 2020:


  • Em um restaurante de grelhados
    próximo ao meu domicílio entrou um
    cliente com um grande chapéu ver-
    melho no qual estava escrito “Make
    America Great Again” [Torne a Améri-
    ca Grande de Novo]. Ele não usava
    máscara de proteção. Quando o gar-
    çom (que ganha US$ 8,50 por hora,
    como detalhou o jornal) pediu ao


Suprema Corte se torne conservadora
por muito tempo. Medo de policiais
racistas que agridem e matam com
impunidade. Medo dos tumultos que
inf lamam as ruas. Medo de que as
pessoas percam o emprego. Medo de
vizinhos que se recusam a usar más-
cara. Medo da máscara em si, vista
como uma focinheira que tenta lhe
impor algum poder misterioso do
qual você jamais havia ouvido falar.
Mas, neste ano eleitoral, o princi-
pal medo que nos submerge é de natu-
reza política: que a democracia se tor-
ne moribunda ou esteja a ponto de ser
derrubada por uma ditadura. Esse re-
ceio com certeza não é novo: o assunto
exalta os ânimos entre amigos de es-
querda de forma episódica há muitos
anos.^1 A era Trump fez soar esse alar-
me desde seu início.^2 Há muito tempo
é um ato de fé democrata considerar
Trump como nada além de um agente
russo; os democratas até tentaram
destituí-lo em janeiro por ter conduzi-
do uma política externa concebida na
verdade com o único objetivo de pre-
judicar seu adversário político, Joe Bi-
den. Esse presidente, como ressalta a
aterrorizante história que contam,
não respeita nem as normas nem as
tradições, e menos ainda a mídia;
também não respeita em especial a
elite da diplomacia norte-americana;
quanto às eleições, ele não está nem aí.
Os democratas quase não evocam
mais o Russiagate,^3 mas na verdade
nem precisam dele. O reino cultural
da Covid-19 – impondo que tudo este-
ja sob o sinal de pânico e de urgência


  • cristalizou esses medos ambientes
    em um artigo que foi compartilhado
    por todos os meus amigos de esquer-
    da, intitulado “Não sabemos como
    alertá-lo mais, a América está mor-
    r e n d o”.^4 Seu autor, Umhair Haque,
    que reivindica um conhecimento
    aprofundado do assunto na qualida-
    de de refugiado que escapou do regi-
    me ditatorial paquistanês, afirma
    que nossa sociedade “está apenas a
    um pequeno passo do desmorona-
    mento da democracia, nas mãos de
    um verdadeiro déspota e de seus fa-
    náticos”. Alertas semelhantes anun-
    ciando amanhãs políticos crepuscu-
    lares inundam as redes sociais em
    um ritmo quase diário.
    O mais fascinante é que os apoia-
    dores trumpistas alegam sentir o
    mesmo. De fato, a versão conservado-
    ra desse pesadelo de massa se revela
    ainda mais interessante que a de seu
    lado progressista, pois ela interpreta
    o temor dos democratas quanto a um
    ataque trumpista contra a democra-
    cia como uma prova de sua própria
    intenção de abater a mesma demo-
    cracia, e o único meio de fazer esse
    plano falhar seria levar Trump ao po-
    der. Nessa visão particular de mundo,
    os democratas semeariam de modo


cliente que cobrisse a boca e o nariz,
tal como estipulava o regulamento,
este levantou a camiseta para mos-
trar ao garçom que estava armado.


  • A manchete de capa dedicada à
    “propagação descontrolada do coro-
    navírus” no estado do Kansas, uma
    notícia que o jornal se abstinha de
    corroborar por meio de suas próprias
    fontes de informação locais, conten-
    tando-se com um mapa epidemioló-
    gico encontrado na internet. Aparen-
    temente, a longínqua autoridade que
    controlava esse mapa tinha feito o
    Kansas mudar de vermelho-sangue
    (ruim) para vermelho-escuro (muito,
    muito ruim). E era isso. Os 2 milhões
    de habitantes da cidade de Kansas
    City que se virassem com essa infor-
    mação chocante: alguém em algum
    lugar tinha atualizado um site de
    aparência oficial.
    Alimentar a atualidade com tuítes
    ou mapas da internet evidencia com
    certeza um jornalismo preguiçoso,
    mas que ilustra bem os Estados Uni-
    dos de hoje. Os jornais regionais não
    conseguem mais reunir informações
    coletadas nos quatro cantos do esta-
    do onde estão situados pela simples
    razão de que não dispõem mais de
    um número suficiente de jornalistas
    para efetuar tal trabalho. Como a
    maior parte de seus confrades, o
    Kansas City Star foi vendido e reven-
    dido diversas vezes ao longo dos últi-
    mos anos, acelerando a hemorragia
    de sua redação. O jornal se desfez de
    seus imóveis históricos em 2017, e seu
    proprietário abriu falência em feve-
    reiro daquele ano. Em julho, foi re-
    comprado por um hedge fund basea-
    do em Nova Jersey.
    Cá estamos na América de 2020:
    ninguém mais pode ter certeza de
    nada, e a agonia da imprensa é só o
    menor aspecto do problema. Graças
    ao confinamento sem precedentes
    vivido no país, as interações pessoais
    com outros humanos se tornaram
    problemáticas; os prédios públicos
    fecharam suas portas ou limitaram o
    acesso de visitantes; o número de ho-
    micídios disparou; as pessoas têm


medo de andar de avião; muitas esco-
las só estão funcionando por ensino
remoto; a Fox News despeja nos teles-
pectadores mais velhos imagens de
violência e caos; e a única pessoa que
ainda liga para o celular velho deles é
uma voz pré-gravada que os ameaça
de prisão se não depositarem alguns
milhares de dólares na conta de al-
gum estabelecimento de crédito.

UM FURACÃO DE TERROR
Enquanto isso, furacões parecem fa-
zer fila para devastar a Louisiana um
após o outro, e a Califórnia tem tantos
incêndios que o céu se tornou cor de
laranja. O mundo está desmoronando
e não há ninguém capaz de consertá-
-lo. Há não muito tempo, durante pe-
ríodos complicados, os dirigentes
deste país empregavam suas compe-
tências em tentar tranquilizar a opi-
nião pública, mas o atual ocupante da
Casa Branca não se preocupa nem
com isso – tudo o que lhe interessa é
livrar-se de suas responsabilidades.
Egomaníaco incapaz de proferir qual-
quer palavra sincera, Donald Trump
reage ao sofrimento de seu povo co-
mo um fraco de espírito que divaga ao
redor de uma vítima de acidente de
carro que testemunhou. Um dos me-
lhores resumos desse colapso episte-
mológico nos foi entregue pelo prefei-
to de Kansas City, quando o Star lhe
pediu que comentasse o rumor se-
gundo o qual uma comissão de agen-
tes federais teria sido enviada à sua
cidade: “É impossível verificar se isso
é verdade, pois nada mais pode ser
v e r i f i c a d o”.
Quando nada mais é verificável, a
imaginação entra em cena. E não é
preciso muito, em tempos de Covid,
para exacerbar nossos medos e fazê-
-los atingir níveis inéditos. Os norte-
-americanos enfrentam o fim do
mundo, acreditamos nós, ou o fim de
nosso modo de vida, ou o fim de qual-
quer coisa grande e importante que
não conseguimos definir, mas que
nos preocupa no mais alto grau.
Cá estamos, presas de uma dúzia
de medos crescentes. Medo de que a

A LUTA DO MEDO CONTRA O ÓDIO


Os Estados Unidos


tomados pela loucura


A nomeação pelo presidente Donald Trump de uma nova juíza para a Suprema Corte
dividiu os Estados Unidos, especialmente porque ela pode desempenhar um papel
decisivo em caso de contestação dos resultados das eleições de 3 de novembro.
E, por enquanto, nenhum dos dois campos parece disposto a aceitar uma derrota

POR THOMAS FRANK*

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