4 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
CAPA
Gênero sob ataque e a
erosão da democracia
A
s agendas da igualdade de gê-
nero e da diversidade sexual es-
tão sob ataque, em reações de
caráter transnacional aos direi-
tos de mulheres e da população LGB-
TQ. Ao mesmo tempo, processos de
desdemocratização têm sido diag-
nosticados em diferentes partes do
mundo, em análises que apontam
para o esgarçamento de instituições,
práticas e valores democráticos. Mas
qual é a relação entre o gênero e a
erosão das democracias? Este artigo
apresenta alguns caminhos possíveis
para responder a essa questão.
Desde os anos 1990, o conceito de
gênero se tornou parte das estraté-
gias de grupos conservadores contra
avanços produzidos pelos movimen-
tos feministas. Na segunda década
dos anos 2000, ele passou a circular
pelas ruas nos cartazes carregados
em protestos contra a chamada
“ideologia de gênero”, que ocorreram
em diversos países. Nessas campa-
nhas, a agenda de gênero é denuncia-
da por colocar em risco as crianças e
as famílias. Já sabemos agora que re-
des transnacionais as promovem, por
isso slogans e estratégias de ação são
comuns, assim como a projeção dos
feminismos como inimigos “estran-
geiros”. Suas consequências variam,
dependendo do equilíbrio de forças
nos contextos nacionais. Estamos,
afinal, falando de países tão distintos
como Espanha, França, Polônia,
Romênia e, na América Latina, Co-
lômbia, Equador, Paraguai, Peru, Mé-
xico e Costa Rica.
O recurso à noção de “ideologia de
gênero” tem permitido ampliar as
alianças de oposição aos direitos hu-
manos e mobilizar apoio a lideranças
e partidos de direita e extrema direi-
ta. Seu caráter estratégico não con-
tradiz sua condição de projeto políti-
co. Nesse projeto, há mais de
conservadorismo. A justificação da
censura, a transformação de adver-
sários e de segmentos inteiros da po-
pulação em inimigos, a recusa a di-
reitos fundamentais e a normalização
da violência e das desigualdades são
elementos de políticas autoritárias
que, a olhos nus, desmontam as ba-
ses frágeis de nossas democracias. E
podem fazê-lo com base popular.
Como isso tem se dado? O comba-
te ao gênero é justificado pela ideia
de que é preciso proteger a infância e
“a f a m í l i a”.
A denúncia da educação sexual
como uma forma de corromper mo-
ralmente as crianças tem sido mobi-
lizada em diversas partes do mundo,
como discutimos no livro recém-
-lançado Gênero, neoconservadoris-
mo e democracia (Boitempo, 2020,
com Maria das Dores Campos Ma-
chado e Juan Vaggione). Dessa pers-
pectiva, a maneira de educar meni-
nas e meninos seria uma escolha de
cada família, negando-se a ideia de
que diretrizes comuns podem ser as-
sumidas em uma sociedade de acor-
do com princípios de justiça, debati-
dos em ambientes democráticos. É,
aliás, o que ganhou volume na Amé-
rica Latina, a partir de 2016, com o
movimento “Con mis hijos no te me-
tas”, criado no Peru.
A censura e o veto se tornaram re-
cursos comuns para impedir o deba-
te sobre gênero nas escolas. No Para-
guai, a Resolução n. 29.664, de 2017,
do Ministério da Educação e Ciência,
proibiu a “difusão e uso de materiais
impressos digitalmente, referentes à
teoria e/ou ideologia de gênero, nas
instituições de ensino”. No Peru, as-
sim como na Colômbia, ministros da
Educação perderam o cargo por pres-
são de grupos conservadores que rea-
giram a conteúdos educacionais para
combater a homofobia e promover a
educação sexual.
Saindo de nossa região, o caso da
Polônia nos mostra até onde essa di-
nâmica pode nos levar. Nesse país,
em 2020, mais de cem governos locais
definiram suas cidades como “LGBT-
-free”, numa grave limitação da cida-
dania de uma parte da população.
No Brasil, a discussão sobre o Pla-
no Nacional de Educação, na Câmara
dos Deputados, em 2014, inaugurou
os vetos ao “gênero” nos conteúdos
educacionais. Desde então, multipli-
caram-se os projetos de lei em nível
municipal e estadual para proibir o
debate sobre gênero nas escolas. A
ativação dessa agenda por parlamen-
tares religiosos e pelo movimento Es-
cola Sem Partido é importante na ca-
pilaridade que esse ataque assumiu.
Um levantamento realizado por João
Vitor Martins, estudante de Ciência
Política da UnB, mostrou que os pro-
jetos para colocar em prática o Escola
Sem Partido nos estados são muito
semelhantes, tendo inclusive a mes-
ma estrutura. Na base disso estão es-
tratégias políticas e jurídicas. Ao
mesmo tempo, a maioria dos autores
dos projetos apresentados para proi-
bir a “ideologia de gênero” e/ou para
efetivar o Escola Sem Partido é reli-
giosa e, sobretudo, evangélica. O
mesmo ocorre no Congresso Nacio-
nal, como mostrou a pesquisa de Ra-
niery Parra Teixeira, também da UnB.
Nesse caso, os evangélicos corres-
pondem a 43,5% dos parlamentares
envolvidos nas proposições que tra-
tam da “ideologia de gênero”, segui-
dos por 24,2% que se identificam co-
mo católicos. Somados a outros que
se apresentam como “cristãos”, 68,2%
se definem como religiosos em regis-
tros oficiais, sites ou redes sociais.
A religião é importante nessas
disputas. Os atores políticos conser-
vadores ativam estratégias para im-
por a moralidade religiosa como mo-
ralidade pública. Isso ocorre em uma
temporalidade específica, na qual a
reação aos avanços produzidos por
movimentos feministas e LGBTQ é
um fator fundamental. Vale observar
que políticos e partidos evangélicos,
que são importantes nessa dinâmica,
expandiram sua atuação com os pro-
cessos de democratização na região.
São atores desses regimes, isto é, se
fizeram justamente em ambientes
políticos mais plurais, mas têm, em
alianças com outros setores conser-
vadores, religiosos ou não, operado
em detrimento do pluralismo ético,
contribuindo para a erosão das
democracias.
A tentativa de censurar debates e
silenciar a crítica vai além das esco-
las. Os estudos de gênero também
têm sido alvos importantes de ata-
ques e de censura ao redor do mundo.
Já foram interditados na Hungria e,
nos últimos dias, a proibição foi pro-
posta na Romênia. Vêm sofrendo li-
mitações também na Polônia. No
Brasil, há razões para acreditar que
se busca atingir esses estudos reti-
rando-lhes o financiamento necessá-
rio à pesquisa científica. Isso ocorre
em meio a um movimento mais am-
plo de asfixia da ciência no país, que
tem sido denunciado desde que Jair
Bolsonaro assumiu a Presidência da
República, mostrando que a reação
abrange, ao mesmo tempo, agendas
igualitárias e o potencial crítico da
ciência. Mas as investidas antecedem
sua eleição. Em novembro de 2017, a
chave do ataque ao gênero foi utiliza-
da com o objetivo de impedir a pales-
tra da filósofa Judith Butler em São
Paulo, em campanha disparada pelas
organizações católicas ultraconser-
Na censura, na desinformação e no discurso de ódio, o ataque ao gênero converge
na atuação de líderes e partidos de extrema direita. Alimentam-se reciprocamente.
E esses ataques podem servir para ampliar a adesão popular a líderes cujas agendas
são, em outros aspectos, antipopulares. Por isso é tão importante compreender a
conexão atual entre a agenda neoliberal e a neoconservadora
POR FLÁVIA BIROLI*
.