Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


CAPA


O poder local tem papel crucial


na reconstrução da democracia


E


m 2020 teremos as primeiras
eleições após a ascensão dos
partidos de ultradireita para o
centro do cenário político bra-
sileiro, ainda na esteira do golpe de


  1. Com praticamente metade de
    seu mandato completo, a eleição po-
    de servir de referendo para o governo
    Bolsonaro e sua avalanche conserva-
    dora no Congresso, nas assembleias
    e nos governos estaduais. Ainda que
    uma guinada à direita ou à esquerda
    nas prefeituras e câmaras de verea-
    dores possa indicar se existe espe-
    rança de um fim para a tresloucada
    aventura fascista em que o Brasil se
    enfiou neste começo de século X XI –
    aventura com resultados possivel-
    mente catastróficos para o futuro
    tanto de nossa população e da nação
    quanto do próprio bioma em que es-
    tamos inseridos –, é uma pena que
    esse embate ofusque a importância
    das eleições municipais, onde deve-
    riam ser apresentadas e debatidas as
    políticas públicas que atingem de
    maneira mais direta a população.
    Precisamos falar sobre o avanço pre-
    datório da direita não apenas sobre
    as instituições democráticas da Re-
    pública, mas também sobre os efei-
    tos práticos que uma avalanche con-
    servadora nas eleições municipais
    teria para o futuro das cidades brasi-
    leiras, principalmente em tempos de
    pandemia.


EXPERIÊNCIAS RECENTES
DA DIREITA NOS MUNICÍPIOS
Precisamos ser sinceros: a destruição
de políticas públicas de amparo so-
cial é figurinha repetida na história
brasileira. O discurso da direita por
um Estado mais enxuto é como um
vilão de filme ruim, que eternamente
reaparece para assombrar a história,
não importa quão abalado ele esteja.
Mesmo depois de inúmeros exemplos
ao redor do planeta de que o receituá-
rio do Consenso de Washington não é
capaz de produzir governos sustentá-
veis e satisfatórios para as populações
que eles tutelam, nos planos de gover-

no dos partidos da direita brasileira
ainda borbulham os temas da auste-
ridade fiscal, sempre em oposição ao
mito da “ineficiência do Estado”.
Na prática, estamos comprando a
solução de quem criou o problema: a
ideologia neoliberal fomenta o des-
monte de políticas públicas construí-
das arduamente durante anos em no-
me de uma suposta prosperidade
econômica que nunca chega, é sem-
pre adiada para amanhã, enquanto
os trabalhadores seguem cada vez
menos amparados pelos direitos his-
toricamente conquistados no agora.
Quanto mais tempo se alongar um
governo de direita, mais frágeis se
tornarão o Estado democrático de di-
reito e as instituições que o supor-
tam, capazes de promover o mínimo
de equanimidade social. Enquanto
nossas cidades continuarem brutal-
mente desiguais como estão, o recei-
tuário da direita fará sucesso nas ter-
ras tupiniquins. Então se engana
quem pensa que essa ascensão da di-
reita por toda parte foi uma colheita
inesperada: estamos plantando as
sementes dessa crise há décadas.

Vejam, por exemplo, que o último
ciclo de gestões municipais já foi
muito marcado pelo arrocho dos ser-
vidores públicos. Na onda do ajuste
fiscal que ganhou força no nível fede-
ral com a gestão Temer, diversos mu-
nicípios colocaram em prática suas
próprias medidas de ataque aos fun-
cionários públicos. Em Curitiba, o
ajuste ficou conhecido como “Paco-
taço do Greca” e promoveu a suspen-
são de planos de carreira, desvalori-
zação dos salários, limitações às
atividades sindicais, entre outros as-
pectos, causando a revolta dos servi-
dores – especialmente os da educa-
ção –, que foram fortemente
reprimidos em suas manifestações.
Por outro lado, com a justificativa dos
prejuízos decorrentes da pandemia,
a Prefeitura destinou dezenas de mi-
lhões de reais para as concessioná-
rias do transporte público sem ne-
nhuma contrapartida, evidenciando
também a subordinação do governo
aos interesses empresariais.
Outro caso emblemático ficou es-
cancarado por causa da pandemia.
No falso Fla-Flu entre a economia e a

vida, prefeituras que foram menos as-
sertivas nas medidas de distancia-
mento e mais lenientes com a abertu-
ra do comércio e as aglomerações
tiveram pior desempenho no enfren-
tamento à pandemia. Uma pesquisa
realizada em março e divulgada no
jornal O Globo mostrava a relação di-
retamente proporcional entre o au-
mento do contágio e o maior apoio
dos eleitores a Bolsonaro, o que per-
mite atribuir parte desse resultado
aos comportamentos induzidos pelo
presidente. Não fosse a atuação deci-
siva dos governos estaduais e munici-
pais para colocar em prática e endos-
sar as medidas na redução do
contágio, de assistência social e mé-
dica e de transparência de informa-
ções aos cidadãos, a resposta brasilei-
ra à pandemia, que já é uma das piores
do mundo, seria ainda mais lúgubre.
No campo da segurança pública,
o xodó da direita raivosa e saudosa da
ditadura militar, a ascensão conser-
vadora também significou a intensi-
ficação da criminalização dos mais
pobres e o aprofundamento do mas-
sacre da juventude negra. Apesar de

Desde o fortalecimento da extrema direita, a partir de 2016, os embates em favor da democracia se fizeram urgentes.
Contudo, a agenda política progressista parece não ter dado a devida importância às conexões entre a questão
municipal, a questão democrática e as políticas urbanas

POR BEATRIZ FLEURY E SILVA, CARINA SERRA AMANCIO, CLARICE OLIVEIRA, CESAR VIEIRA,
CONRADO FERRATO, ION DE ANDRADE, JOSÉ RICARDO FARIA, MARCELO LEÃO E MARIA CAROLINA MAZIVIERO*

© Jonas Pacheco/Unsplash

Precisamos falar sobre o avanço da direita nas eleições municipais

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