Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

12 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


A vingança do campo


Uma casa com jardim, protegida do estresse das grandes cidades... A ideia seduziu muitos habitantes urbanos
castigados pela crise sanitária. Entretanto, a qual “vingança do campo” assistimos atualmente?

POR BENOÎT BRÉVILLE*

CONFINAMENTO ESVAZIA AS METRÓPOLES DE SEUS ATRATIVOS


I


mpossível não percebê-los no me-
trô parisiense. “Alès, a capital onde
não falta ar”, “Sologne, ar”, “Seine-
-et-Marne, a verdadeira grande
aposta”...: desde maio, esses anún-
cios estão expostos nos corredores e
nas plataformas para incentivar os
usuários a mudar de vida, com parti-
cular insistência na linha 1, aquela
que leva ao bairro empresarial de La
Défense. Não faz mais de um ano, Pa-
ris enfrentava Londres, Nova York ou
Cingapura na competição global pa-
ra atrair sedes de empresas, grandes
eventos e trabalhadores de colarinho
branco com alto nível de escolarida-
de. Agora, as pequenas cidades rou-
bam seus executivos seniores nos
subterrâneos do metrô.
A Covid-19 passou por ali. Os con-
finamentos e as “medidas de conten-
ção” reduziram a nada tudo o que fa-
zia a atração das metrópoles:
restaurantes, cafés, concertos, mu-
seus, pequenos comércios, grandes
festivais, a intensidade das relações
sociais, a possibilidade de viajar fa-
cilmente saltando de um aeroporto
para uma estação... Em vez disso,
desde a pandemia, a vida tem se re-
duzido ali cada vez mais ao eterno
casa-trabalho-casa, e ninguém sabe
realmente quando isso vai acabar.
Por isso, algumas pessoas se pergun-
tam: por que se amontoar em aparta-
mentos apertados e caros quando os
prazeres da vida urbana são proibi-
dos? Elas não se sentiriam melhor em
uma pequena cidade, ou no campo,
confortavelmente instaladas em uma
grande habitação com jardim? O ho-
me office parece abrir essa possibili-
dade a muitos assalariados ou tercei-
rizados qualificados, enquanto o
comércio on-line, que coloca todos os
produtos à mão, permite que as pes-
soas vivam como um citadino, mas
próximas da natureza.
Muitos franceses tentaram isso
durante o confinamento da primave-
ra. Assim que a medida foi anuncia-
da, em Paris, Lyon ou Lille, as estra-
das e estações foram tomadas por
moradores que desejavam retornar à
sua segunda residência ou à casa de
sua família. Nada menos que 451 mil
parisienses teriam deixado a capital
em março-abril, ou seja, um quarto
da população da cidade e quatro ve-
zes mais que no ano anterior.^1 O mes-

mo fenômeno afetou a maioria das
metrópoles mundiais. Em Nova York,
alguns bairros ricos de Manhattan
perderam mais de 40% de sua popu-
lação.^2 Em Londres, o Financial Ti-
mes evocou uma “cidade deserta”,
onde todo dia parecia domingo: “Os
banqueiros desapareceram”, obser-
vou o diário da cidade, “e novas tri-
bos, usando outros uniformes, apa-
receram: operários da construção
com suas calças pretas reforçadas
nos joelhos e suas botas empoeira-
das; guardas de segurança com cole-
tes f luorescentes andando em frente
a saguões de entrada desertos; jovens
vestidos de lycra correndo ou peda-
lando em ruas desertas”.^3
“Fuja cedo, para longe, e demore
para voltar.” No século V antes da
nossa era, Hipócrates já professava
esse remédio contra as epidemias e,
em consequência, aqueles que po-
diam poucas vezes se faziam de roga-
dos. Quando Avignon foi atingida pe-

la peste negra (1347-1348), a corte
pontifícia fez as malas para fugir da
doença. O mesmo foi feito em Paris
no século XIX para escapar da cólera.
Mas, com o coronavírus, os citadinos
que pegaram a chave do campo não
queriam apenas se colocar ao abrigo:
também buscavam uma situação
mais agradável para viver o
confinamento.

“REFÚGIO DE PAZ
SITUADO NA FLORESTA”
A mídia ficou cheia desses felizes exi-
lados, que exibiam um gosto reen-
contrado pela calma, pelo ar puro,
pela natureza, pelos cafés da manhã
em família e para os quais o período
tinha um sabor de férias. Não preci-
sou muito para que ela acabasse por
falar de uma “vingança do campo”,
senão das “cidades médias” e da
“França periférica”, após anos de do-
minação esmagadora das metrópo-
les. Na France Culture, em 1º de abril,

Brice Couturier profetizou “uma es-
pécie de êxodo rural às avessas”, que
“vai contribuir para o reequilíbrio
geográfico de nossas regiões, que ho-
je sofrem com a desertificação do
campo”. O Le Figaro (10 abr.) garantiu
que “o desejo provinciano, muito
presente entre os habitantes das ci-
dades, será reforçado e favorecerá o
home office”. Já o economista Olivier
Babeau previu uma “ruptura dos
principais equilíbrios do mercado
imobiliário”, em benefício das áreas
rurais, que vão tirar proveito de suas
“muitas vantagens exclusivas: o pre-
ço, o ar, a tranquilidade e sobretudo o
espaço, que se tornou tão precioso”.^4
Desde o fim do confinamento, são
incontáveis as reportagens sobre Ali-
ce e Ferdinand, ambos atores, que
trocaram seu apartamento em Paris
por uma casa na Normandia (France
3, 9 nov.); Céline, especialista em
“animação de inteligência coletiva”,
que também deixou a capital e agora

© Angelo Brathot/CC

Margens de lagoa em Sologne, região centro-norte da França, a 310km de Paris

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