Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17


PARA ACABAR COM A ESCASSEZ E COM AS FALSIFICAÇÕES


A emergência de


uma indústria


farmacêutica africana


A África do Sul, ao lado da Índia, pediu à Organização Mundial do Comércio (OMC) que
suspendesse a propriedade intelectual de vacinas e medicamentos durante a pandemia.
Trata-se de garantir à população o acesso a tratamentos mais baratos.
Apesar do surgimento de uma indústria local, a África continua dependente
de grupos farmacêuticos estrangeiros

POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS*

A


tenção para a cloroquina falsifi-
cada! Produtos semelhantes ao
Nivaquine, como o Nirupquin e
o Samquine, estão circulando
em vários países da África ocidental
em diferentes embalagens, avisou a
Organização Mundial da Saúde (OMS)
no dia 9 de abril de 2020.^1 Com a pan-
demia de Covid-19 e a divulgação de
vídeos do virologista francês Didier
Raoult, explodiu o tráfico de antima-
láricos à base de cloroquina – alegada-
mente eficaz no combate ao vírus,
embora até o momento nenhum estu-
do científico tenha demonstrado tal
eficácia. A apreensão de várias caixas
no final da primavera sugere, sem cer-
teza, que há comprimidos vindos da
Ásia e de laboratórios clandestinos lo-
cais.^2 Nenhum desses medicamentos
tem autorização de comercialização.
Para a OMS, o assunto é ainda mais
preocupante quando se sabe que mais
de 100 mil crianças africanas morrem
todo ano pelo consumo de substân-
cias adulteradas.
Em um continente com 30 mi-
lhões de quilômetros quadrados
(três vezes o tamanho da Europa),
as dificuldades para chegar aos
pontos de venda dificultam o acesso
aos medicamentos, promovendo a
escassez. Cápsulas, comprimidos e
xaropes podem percorrer milhares
de quilômetros, por portos e aero-
portos, até chegar aos pacientes.
Além disso, em 2014 havia na África
apenas 0,9 farmacêutico, técnico
farmacêutico ou equivalentes para
cada 10 mil habitantes, contra uma
média mundial de 4,3, e apenas 2,
médicos para cada 10 mil habitan-
tes, contra 14,1 em escala global. É o
continente com menores índices do
planeta.^3 Nesse contexto, explodiu o
número de farmácias não autoriza-
das que oferecem todo tipo de pro-
duto em qualquer caixinha, sobre-


tudo na África ocidental. A
automedicação, na ausência de pro-
fissionais que façam a prescrição,
estimula o tráfico.
Analgésicos, antimaláricos, anti-
bióticos, antifúngicos... Todas as cate-
gorias de moléculas fazem parte desse
cenário.^4 No outono de 2019, as autori-
dades de Uganda apreenderam caixas
com o carimbo “Doações do governo
de Uganda, não destinadas à venda”
cheias de produtos que foram adquiri-
dos pelo centro de compras do país a
preços de atacado e depois desviados
e revendidos a um preço mais alto por
comerciantes privados. Também fo-
ram encontrados medicamentos fal-
sificados, em geral importados da
Ásia. Os contrabandistas conseguem
facilmente transportar substâncias
ilegais através de países enfraqueci-
dos pela guerra, como Nigéria e Ca-
marões, assolados pelo Boko Haram.
Diante do risco à saúde e das quei-
xas dos profissionais do setor, os pre-
sidentes do Togo, do Congo-Brazza-
ville, de Uganda, do Níger, do Senegal,
de Gana e da Gâmbia decidiram, em
janeiro de 2020, em Lomé, coordenar
a luta contra o tráfico farmacêutico.
Mas o tratado assinado será converti-
do em ações? As companhias farma-
cêuticas, por sua vez, mobilizam-se
para detectar fraudes e oferecer for-
mação aos agentes públicos. Em
2008, por exemplo, a francesa Sanofi
inaugurou, em Tours, na França, o
Laboratório Central de Análise de
Falsificações, que estuda casos de de-
feitos vindos do mundo inteiro. A Pfi-
zer, cujo Viagra é muito falsificado,
ensina às autoridades alfandegárias
técnicas para detectar produtos fal-
sos, mesmo quando dissimulados em
remessas legais. “Temos uma espécie
de compêndio de boas práticas que
permite detectar as falsificações por
meio de inspeção visual – da embala-

gem ou do consumível – no meio de
cargas legais”, explica Joseph Kpou-
mie, alto funcionário da alfândega
camaronesa.

UM QUARTO DOS
DOENTES DO PLANETA
No entanto, ocorre que “a maior par-
te dos medicamentos que circula no
mercado paralelo é de produtos ver-
dadeiros”, explica a antropóloga Ca-
rine Baxerres, ligada ao Instituto de
Pesquisa para o Desenvolvimento
(IRD) da França e à Universidade de
Paris Descartes, e principal pesqui-
sadora do projeto sobre telemedicina
Globalmed. O grupo UPSA, cujo fa-
moso Efferalgan pode ser encontrado
em todas as prateleiras dos comer-
ciantes ilícitos, confirma, nas pala-
vras de seu presidente, François Du-
plaix: “A maioria são medicamentos
verdadeiros desviados do circuito
oficial de distribuição local. Nunca
recebemos notícias de produtos falsi-
ficados relacionados ao Efferalgan”.
Mas o fenômeno das substâncias fal-
sificadas com dosagens incorretas
existe, afetando outros produtos. Em
Camarões, por exemplo, ele foi iden-
tificado em relação ao tramadol, um
analgésico de classe 2 que alimenta
uma crise de dependência de opioi-
des na África central. A pandemia de
Covid-19 agravou os desvios e colo-
cou em evidência a subprodução lo-
cal de medicamentos. “As restrições
temporárias às exportações indianas
de hidroxicloroquina^5 e a crescente
demanda por cloroquina no mundo
lançaram luz sobre a dependência
dos países da África ocidental em re-
lação a atores externos, estimulando
a produção regional desse medica-
mento”, explica o pesquisador Anto-
nin Tisseron.^6
A África abriga 25% de todos os
doentes do mundo, considerando-se

o conjunto das doenças.^7 Para suprir
suas imensas necessidades, o conti-
nente importa, sobretudo da Ásia, en-
tre 70% e 90% de seus medicamentos,
aos quais muitos países dedicam até
80% de seus gastos com saúde. Ape-
nas a África do Sul e o Marrocos dis-
põem de uma indústria farmacêutica
que cobre de 70% a 80% da demanda
local.^8 O desafio sanitário é também
um desafio comercial, uma vez que o
aumento das doenças não transmis-
síveis – câncer, diabetes, doenças
cardiovasculares – aguça o apetite
das multinacionais.^9 O continente
ainda representa apenas 3% de um
mercado mundial que deve movi-
mentar US$ 1,4 trilhão em 2021.^10
Apenas 375 produtores, a maioria
deles sediada no Magreb e no Egito,
dividem o mercado continental.^11 Ao
sul do Saara, há sobretudo fabrican-
tes de medicamentos genéricos sob
licenças estrangeiras, ou empresas
que realizam pequenas operações,
como o acondicionamento de pro-
dutos importados que são reembala-
dos para o mercado local. As empre-
sas asiáticas dividem a maior fatia
desse mercado, com “toda uma série
de medicamentos genéricos, india-
nos, chineses ou paquistaneses, des-
conhecidos fora da África”, destaca,
em Abidjan, Jean-Marc Bouchez,
presidente da Associação da Indús-
tria Farmacêutica da África Subsaa-
riana de Língua Francesa (Lipa). Ele
acrescenta que, ali, os padrões inter-
nacionais definidos pela OMS nem
sempre são respeitados, falando em
“práticas mais que duvidosas, favo-
recidas por regulamentações pouco
r i g o r o s a s”.^12
Os países de colonização francesa
e inglesa apresentam situações dife-
rentes. Para os primeiros, a brutal
desvalorização do franco CFA (–50%),
em 12 de janeiro de 1994, atingiu em
cheio um setor que importava 90% de
seus tratamentos de países com moe-
das fortes – e milhões de africanos
sem seguro-saúde. “Os atacadistas
pararam de abastecer as farmácias
enquanto aguardavam que o governo
autorizasse a mudança de preço”,
lembra Prosper Hiag, presidente da
Ordem dos Farmacêuticos de Cama-
rões. “Após três semanas de negocia-
ções, acabaram conseguindo um au-
mento de 64% no preço de venda. Foi
um drama. Você chegava à farmácia e
descobria que o remédio que na vés-
pera custava 100 francos estava sen-
do vendido a quase 200. Foi então que
se começou a buscar soluções mais
baratas, principalmente os genéri-
cos.” Na África ocidental, esses medi-
camentos eram então trazidos da Eu-
ropa, especialmente de Bruxelas.
“Mas a Bélgica já estava mandando
fabricá-los na Índia. Aos poucos, os
fabricantes indianos começaram a se

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