Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5


PAIXÕES E EMOÇÕES DOMINAM A CENA POLÍTICA NORTE-AMERICANA


O grande desfile de lágrimas


C


hegou a hora das lágrimas nos
Estados Unidos. Os juízes estão
chorando. Os comentaristas de
televisão estão chorando. Os
partidários do perdedor da eleição
presidencial estão chorando. Os par-
tidários do vencedor da eleição presi-
dencial estão chorando. Eles escre-
vem colunas sobre os orgasmos
lacrimais que lhes foram proporcio-
nados por este ou aquele líder. É uma
questão de orgulho moral.
Ao mesmo tempo, é uma questão
de vergonha. Pessoas que choram são
fracas, assim pensam os norte-ame-
ricanos, e essa brava nação de pionei-
ros e empreendedores recua desgos-
tosa diante de tamanho infantilismo.
Os vídeos de democratas derraman-
do lágrimas quentes na noite da elei-
ção de 2016, após a derrota de Hillary
Clinton, se multiplicaram no YouTu-
be nos meses seguintes, para prazer
dos republicanos, que se deleitavam
com a visão desses idealistas bem-e-
ducados e graduados brutalmente
forçados a engolir suas ambições. As
“lágrimas progressistas” logicamen-
te se tornaram um dos grandes me-
mes dos anos Trump. “Fazer os libe-
rais chorar de novo”, podia-se ler em
2020 em muitos banners e cartazes
agitados por partidários do presiden-

te que encerra o mandato. Existe até
uma marca de produtos para armas
de fogo chamada Liberal Tears, em
referência à frase “I lube my rif les
with liberal tears” (“Lubrifico meus
fuzis com lágrimas liberais”).
Como de costume, os democratas
responderam a essa onda de sarcas-
mo teorizando-a e decretando que
ela revelava falta de personalidade
entre os conservadores. “A expressão
‘Faça-os chorar’ torna-se precisa-
mente um discurso de poder”, ensi-
nava a colunista Monica Hesse no
Washington Post de 5 de novembro.
“Trata-se de pessoas fortes que hu-
milham aquelas que consideram fra-
cas, porque isso as diverte e porque
têm meios para tal.” Eis aí uma curio-
sa alegação se pensarmos que pro-
vém de um jornal de Jeff Bezos, o ho-
mem mais rico do mundo, e defende
um partido político que, longe de ser
“fraco”, passa seu tempo a ofender
seus adversários e recolhe somas
imensas de dinheiro em campanhas
eleitorais – muito mais que os repu-
blicanos cruéis.

UM HOBBY BIPARTIDÁRIO
Melhor ainda, dez dias após a publi-
cação dessa coluna, o Washington
Post publicou na primeira página

uma charge que retratava Donald
Trump como um bebê grande, fazen-
do birra em relação à sua derrota para
Joe Biden. O jornal contradizia sua
própria colunista. Desse modo, zom-
bar dos infortúnios do outro lado é
um hobby perfeitamente bipartidá-
rio. Em 2012, apareceu brevemente
na web um site intitulado “Brancos
chorando por [Mitt] Romney”: os in-
ternautas eram convidados a rir
diante de imagens de republicanos
abatidos após a derrota de seu candi-
dato para Barack Obama.
Na verdade, cada lado gosta de
zombar do perdedor e considera as
próprias lágrimas nobres e justas, co-
mo a manifestação de sentimentos
políticos genuínos, uma prova de vir-
tude filosófica. Durante seus comí-
cios, por exemplo, Trump às vezes
contava uma história sobre trabalha-
dores (ora da indústria de mineração,
ora da indústria siderúrgica) que te-
riam derramado lágrimas em sua
presença, atestando sua incrível aura
de presidente.
O enternecimento republicano,
porém, não é nada comparado às tor-
rentes de lágrimas de alegria que a
imprensa nacional conscienciosa-
mente documentou após a queda de
Trump. No New York Times (13 nov.),

a estrela de TV Padma Lakshmi disse
ter experimentado um misterioso ca-
lor interno que havia “explodido na
forma de lágrimas incontroláveis” ao
saber que Kamala Harris havia sido
eleita vice-presidente, antes de con-
tar como tinha “chorado de novo” as-
sistindo a seu (insignificante) discur-
so de vitória. Ela explica essa
profunda emoção pelo fato de Kama-
la Harris “proporcionar a muitas mu-
lheres negras e mestiças um senti-
mento de pertencimento”.
Para fazer correr lágrimas de vir-
tude, um método muito popular con-
siste em encenar a inocência da in-
fância diante de um ambiente
político pervertido. Nesse joguinho,
as palmas vão para o juiz conserva-
dor Brett Kavanaugh, cuja nomeação
para a Suprema Corte em 2018 foi
perturbada por acusações de agres-
são sexual. Ele respondeu contando,
entre outras coisas, como sua filha, “a
pequena Liza, do alto de seus 10
anos”, tivera a ideia de orar pela acu-
sadora de seu pai – uma cena que ele
obviamente relatou fungando profu-
samente. E como esquecer o espetá-
culo do pobre Van Jones, o ex-revolu-
cionário que virou comentarista da
CNN, tentando engolir as lágrimas
por quase dois minutos, durante uma
transmissão ao vivo, após o anúncio
da vitória de Biden? Sua emoção era
compreensível (“É mais fácil ser pai
esta manhã, é mais fácil dizer aos
seus filhos que a moralidade é impor-
tante”), mas a estranheza da cena se
deve à maneira como a câmera per-
maneceu focada nele enquanto ele
falava, oferecendo aos telespectado-
res um longo e deliberado episódio
de desconforto.
Nesse tipo de situação, em que o
próprio corpo é o penhor da verdade,
as lágrimas são associadas à sinceri-
dade. Ninguém ousaria duvidar da
autenticidade das emoções de uma
pessoa em prantos, sobretudo se um
close mostra o rímel escorrendo. Essa
também é a razão pela qual, de vez
em quando, os norte-americanos
precisam ser lembrados de quanto
foram enganados por essa ostentação
lacrimal. Nas décadas de 1980 e 1990,
os televangelistas e suas lamentações
teatrais eram a vergonha do país. As
lágrimas faziam parte do arsenal de
fogos de artifício que eles usavam pa-

Chorar é o suficiente para dizer a verdade? Essa questão poderia explicar por que, em um período em que a mentira
domina a vida política e as redes sociais norte-americanas, as lágrimas tenham inundado a cena

POR THOMAS FRANK*

© Jan Canty/Unsplah


As lágrimas estão no cerne da política norte-americana e fornecem argumentos poderosos

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