Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

22 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


O LABORATÓRIO DO NEOLIBERALISMO VIRA A PÁGINA ELEGENDO UM PRESIDENTE DE ESQUERDA


Com quase 56% dos votos, o candidato de esquerda Gabriel Boric acaba de
ganhar as eleições presidenciais contra o deputado José Antonio Kast, candidato
nostálgico da junta militar de Augusto Pinochet. Com 35 anos de idade, Boric
se tornará o presidente mais jovem da história da América Latina
em 11 de março de 2022. E, então, tudo estará por fazer...

POR FRANCK GAUDICHAUD*

No Chile, tudo vai começar


N


a noite de 19 de dezembro, um
arrepio de alívio percorreu gran-
de parte do Chile. Ele fez vibrar,
é claro, os estados-maiores da
esquerda chilena, mas também circu-
lou de casa em casa, nas redes sociais,
conectando centenas de milhares de
cidadãs e cidadãos. Liderada por José
Antonio Kast, uma extrema direita rea-
cionária e neoliberal, nostálgica da di-
tadura (1973-1989), ameaçava tomar o
Executivo no segundo turno das elei-
ções presidenciais. Essa extrema direi-
ta acaba de ser derrotada pela coalizão
de esquerda Apruebo Dignidad (Apro-
vo Dignidade), uma aliança entre o
Partido Comunista, a Frente Ampla e
ecologistas regionalistas, liderada por
Gabriel Boric. Uma enorme multidão
comemora pelas ruas de Santiago e em
muitas cidades do país. A festa popular,
as canções de luta, as expressões embe-
vecidas, os sons das buzinas estendem-
-se até tarde da noite.
A batalha não parecia ganha ante-
cipadamente, e havia muitos indecisos.
No primeiro turno, 53% do eleitorado
não compareceu, confirmando uma
tendência de fundo, observada desde a
transição democrática, em 1990, e prin-
cipalmente desde o fim do voto obriga-
tório em 2012: a da abstenção em massa
e do crescente desencanto com uma de-
mocratização marcada pela continuida-
de neoliberal e por muitos legados auto-
ritários.^1 Entre os dois turnos, a equipe
de campanha de Boric buscou sair dos
bairros de classe média da capital que
caracterizam sua base social para per-
correr os territórios distantes, de norte a
sul, bem como as áreas rurais e os bair-
ros pobres. Era preciso mobilizar os abs-
tencionistas e recuperar o terreno onde
Kast havia conquistado excelentes resul-
tados. Uma aposta bem-sucedida: a par-
ticipação saltou para quase 56% no se-
gundo turno, com o Chile ultrapassando
pela primeira vez a marca de 8 milhões
de votantes. Boric venceu com mais de
10 pontos à frente de seu adversário.
No aparelho que o levou ao poder,
Izkia Siches, também de 35 anos, teve
um lugar decisivo: presidenta do Colégio
Médico durante a pandemia, originária
do norte do país (Arica) e reconhecida
por sua oposição ao atual presidente

Sebastián Piñera a respeito das ques-
tões sanitárias, ela conseguiu revitalizar
a campanha. Os primeiros dados sobre
as eleições revelam que as mulheres e
os jovens foram o motor da vitória, con-
tribuindo amplamente para a diferença
de quase 1 milhão de votos entre os dois
candidatos. As estimativas mostram que
68% das mulheres com menos de 30 anos
votaram em Boric, enquanto Kast venceu
entre as pessoas com mais de 70 anos.^2

A MEMÓRIA DE ALLENDE
No primeiro turno, o advogado católico
ultraconservador de 55 anos, pai de nove

filhos, surpreendeu ao chegar em pri-
meiro lugar, com 28% dos votos, à frente
de Boric (23%). Antes desse susto, havia
quem sonhasse que este último tivesse
uma vitória fácil. Isso porque, nos últi-
mos dez anos, o presidente eleito teve
uma trajetória excepcional: oriundo da
“esquerda autônoma” dos anos 2000, em
2011 ele era dirigente da Federação dos
Estudantes da Universidade do Chile
(Fech) (durante as grandes mobilizações
da juventude por uma educação “gratui-
ta, pública e de qualidade”)^3 e em 2013
foi eleito deputado independente, sem o
apoio de nenhum partido. Uma façanha

no sistema eleitoral chileno, que favore-
ce as coalizões de partidos de centro em
detrimento dos independentes. Depois
Boric foi reeleito ao lado de figuras das
lutas estudantis, como Camila Vallejo^4
(membro do Partido Comunista) e Gior-
gio Jackson, seu braço direito desde en-
tão. Foi com este que ele fundou a Frente
Ampla (FA) em 2016, posicionada de ma-
neira crítica entre a esquerda comunista
histórica (e suas referências castristas ou
bolivarianas) e os partidos tradicionais
da antiga Concertación (coalizão entre o
Partido Socialista e a Democracia Cristã,
que esteve no poder entre 1990 e 2010),

© Rodrigo Garrido/REUTERS

Gabriel Boric venceu as eleições com a coalização entre o Partido Comunista, a Frente Ampla e ecologistas regionalistas
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