JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 35
simples, mas é uma questão mais difí-
cil do que parece. Uma canção cantada
em uma apresentação gera, como direi-
tos, alguns centavos de euros revertidos
no ano seguinte pela Sacem e por ou-
tros órgãos de distribuição (Spedidam,
Adami). Se faço corretamente o cálculo,
por um lado, devo tirar de meu salário
líquido a indenização diária do desem-
prego quando não recebo nos dias de
apresentação, uma vez que neles eu
trabalho; e, por outro, acrescentar a ele
os poucos euros de direitos por isso co-
letados... Digamos que, na melhor das
hipóteses, ganho cerca de 60 euros lí-
quidos por apresentação.
Uma típica jornada de “trabalho” –
e ponho trabalho entre aspas por uma
espécie de pudor em relação às pessoas
que trabalham em cadeias de produção,
de forma massacrante, ou na educação
nacional –; portanto, para nós, uma
jornada de trabalho é isto: nós, a ban-
da, atualmente seis pessoas, subimos
em um caminhão alugado na véspera,
rodamos algumas centenas de quilô-
metros, descarregamos e, à tarde, insta-
lamos o material na sala de espetáculo,
repassamos as músicas, aguardamos a
hora da apresentação, tocamos durante
uma hora e meia diante de umas pou-
cas dezenas de pessoas, arrumamos o
material, dormimos no lugar, partimos
novamente no dia seguinte para as cen-
tenas de quilômetros de volta, descar-
regamos o material na casa de uns, na
casa de outros e saímos para devolver o
caminhão na casa do locador... Certa-
mente, por cerca de 60 euros. Não me
queixo, é uma vida que eu não trocaria
por nenhuma outra. Mas é verdade que,
às vezes, do alto de meus 49 anos, me
acontece duvidar que cantor francês
seja realmente uma profissão do futuro,
uma carreira a aconselhar. Ser trabalha-
dor temporário é complicado.
No entanto, a Mendelson é uma
banda que tem sorte. Ela conseguiu so-
breviver a ventos e marés durante os úl-
timos 25 anos. A Mendelson tem um es-
túdio de discos que fabrica seus álbuns,
um distribuidor que os armazena, uma
assessoria de imprensa que informa ao
mundo sobre sua existência e até um
produtor de turnês que se dedica com
obstinação a convencer os responsáveis
pelas programações dos motivos de
perder dinheiro oferecendo a Mendel-
son a seu público. Recentemente, uma
sala muito renomada, que vai acolher a
banda neste inverno para sua apresen-
tação, nos comunicou sua previsão or-
çamentária para a realização do evento.
Ela espera conseguir vender 150 luga-
res. Uma vez aberta, o bar e a bilheteria
em funcionamento, a segurança insta-
lada e qualquer outro custo considera-
do, inclusive o custo para recepção do
grupo (grosso modo, 2.500 euros, que
compreendem os salários dos músicos,
o aluguel do caminhão, os custos da ga-
solina, o salário do produtor da turnê,
também com base no salário mínimo
etc.), considerando todas essas despe-
sas, o balanço da sala – desde que ela
venda os 150 ingressos – será deficitá-
rio em, pelo menos, 3 mil euros. A partir
do momento em que eu entro em cena,
levo à perda de dinheiro. Cada vez que
isso acontece, eu custo no mínimo 3 mil
euros. Para a coletividade.
Enfim, em última análise, para um
país é uma honra poder se organizar
para fazer buracos orçamentários – para
hospitais públicos, para escolas públi-
cas, para serviços públicos em geral
e também para a cultura, que é outro
serviço eminentemente público. Mas
saber o que isso custa, efetivamente,
para uma apresentação da Mendelson
é um modo de não dar as costas para a
economia muito frágil de algumas salas
de espetáculo com boa vontade, para
as reais dificuldades de muitas dessas
associações, que todos os últimos go-
vernos têm como alvo e que às vezes
correm um verdadeiro risco (financeiro)
para nos acolher. Tenho um grande hor-
ror de ser desses artistas empoleirados
em suas nuvens poéticas e, por nature-
za, legitimados a não olhar para o chão.
Obviamente, ao contrário, propor uma
apresentação deficitária faz parte da
missão da maioria das salas, sobretudo
as subvencionadas – e supõe-se que as
subvenções sustentam uma política cul-
tural de qualidade. E nós, a Mendelson,
somos considerados um “produto de
qualidade”. A verdade é que é preciso ter
muita certeza de sua pertinência artísti-
ca para se aproximar de um microfone
nessas condições. Eu sou cantor. Uma
determinada crítica esclarecida é preci-
sa: eu tenho “qualidade”. Sou uma ruína
para a sociedade. É difícil não me sentir
culpado. Ter “qualidade” sem “quantida-
de”, isso também é complicado.
Não me queixo. Ao contrário. Mas
estou errado. A queixa é a tendência.
Nos dois últimos anos de pandemia, as
rádios a divulgaram ininterruptamen-
te, tive a oportunidade de ouvir pobres
artistas se queixarem do destino trági-
co que lhes coube: serem privados de
seu querido público. E se declararem
também ser vítimas. E murmurarem.
E se descreverem. Com lágrima nos
olhos. E eles se filmavam em suas re-
sidências parisienses se descreven-
do com lágrima nos olhos. E em seus
jardins em Sologne. Uma emissora de
rádio lhes deu a palavra todas as ma-
nhãs; eles vinham diretamente falar
de sua infelicidade. E também falar
de sua coragem. Não desanimar! Essa
vontade, ligada a um grande espírito
de resistência, de apesar de tudo conti-
nuar... era de chorar. Aliás, chorei bas-
tante, desliguei o rádio. Aquelas pes-
soas fazem, aparentemente, o mesmo
trabalho que eu, mas é como se elas o
fizessem em outro planeta – um plane-
ta onde a dignidade ou a decência não
tivessem sido inventadas. Mas não jul-
go. Não posso julgar.
Ser artista, com toda certeza, é com-
plicado.
*Pascal Bouaziz é cantor e autor de
Mendelson Intégrale (1995-2021), Média-
pop Éditions, Paris, 2021.
1 Cabe ressaltar que, na França, o regime de
trabalho do intermitente do espetáculo é pe-
culiar e oferece uma série de garantias relata-
das pelo autor, ao contrário do trabalho inter-
mitente regulamentado pela reforma
trabalhista de 2017 no Brasil. (N.T.)
2 Em homenagem a Olivia Rosenthal e ao refrão
lancinante de On n’est pas là pour disparaître
[Não estamos aqui para desaparecer], Édi-
tions Verticales, Paris, 2007.