JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 37
Esses gentis artistas
governamentais!
Capitalismo: sistema
desmedido e destruidor
A
nselm Jappe é um dos represen-
tantes mais notáveis e inovado-
res da escola da teoria do valor,
fundada por Robert Kurz e pela
revista Krisis. Seu último livro, A socie-
dade autofágica (Elefante, 2021), é uma
contribuição apaixonante à crítica do
capitalismo, sistema baseado na des-
medida e na destruição.
Jappe compara o capitalismo a um
personagem da mitologia grega, Eri-
sictão, cuja fome nada podia saciar: ele
devorava tudo à sua volta e acabou por
devorar a si mesmo. O capitalismo,
com alicerces no valor mercantil, par-
tilha essa hybris, essa desmedida: não
conhece limites nem entraves a seu
crescimento. Forma geral da produção
e da reprodução da sociedade, princí-
pio de síntese, o valor é uma abstração,
uma quantidade, um número puro;
com sua exigência de rentabilidade,
colonizou todas as esferas da vida. In-
saciável, devora a vida dos humanos e
da natureza, sem descanso nem tré-
gua. A concorrência no mercado obri-
ga cada ator a participar do jogo frené-
tico do “crescimento”, caso contrário
desaparecerá: eis a raiz profunda do
desastre ecológico ao qual o capitalis-
mo conduz.
É um sistema, observa Jappe, recor-
rendo às análises de Marx em O capital,
que funciona como um “sujeito autô-
mato”, apoiado em estruturas anôni-
mas e impessoais, em “leis econômicas”
cegas como a “rentabilidade”, o “cresci-
mento” etc. Os capitalistas são meros
“funcionários” da valorização, “oficiais
e suboficiais” [Marx] do capital. Nesse
sistema, ancorado no fetichismo da
mercadoria, o dinheiro e a produção se
tornam sua própria finalidade.
O autor se interessa muito pelas
consequências psíquicas dessa lógica
capitalista: a concorrência, a frieza, a
indiferença, a ausência de empatia as-
sumem a forma de narcisismo, de afir-
mação do eu isolado, de agressão con-
tra os outros e a natureza, podendo
conduzir, em certos casos, à figura do
“assassino em massa”. A combinação
letal de fetichismo da mercadoria com
narcisismo, a desmedida e a perda de
sentido desandam no que Jappe chama
de “pulsão de morte do capitalismo”.
Essa análise do sistema, com base
em Marx e na teoria do valor, parece-
-me muito pertinente e incisiva: o valor
mercantil impõe uma dominação abs-
trata, impessoal, que esmaga tudo em
seu caminho, como um trator mons-
truoso, e devora tudo ao redor, como o
mítico Erisictão grego. Meu único de-
sacordo com Jappe e a maior parte dos
adeptos da teoria do valor é o desapare-
cimento da luta de classes. Segundo
ele, é preciso ir além da dicotomia entre
dominadores e dominados, opressores
e oprimidos. Concordo mais com o mi-
lionário norte-americano Warren Buf-
fet: “A luta de classes existe e nossa
classe está prestes a vencê-la”. Jappe
supõe que não existe classe dominante,
quando muito uma “classe que lucra”.
Mas, para assegurar seu lucro, ela não
exerce um domínio – econômico, pela
propriedade dos meios de produção;
ideológico, graças ao monopólio dos
meios de comunicação; e político, em
virtude do controle do aparelho do Es-
tado, da polícia e do Exército? Existe
uma dialética, que Marx compreendeu
bem, entre a impessoalidade do siste-
ma e o poder da classe dominante.
Como negar o combate entre explo-
radores e explorados, opressores e opri-
midos na sociedade capitalista? Não
quer dizer que os dominados lutem
sempre para abolir o capitalismo; mas a
luta nem por isso é menos real. Um ca-
pítulo inteiro O Capital trata da luta pe-
la redução da jornada de trabalho, um
conf lito de classes retomado em segui-
da pelos Mártires de Chicago, pelo Pri-
meiro de Maio e pela conquista da jor-
nada de oito horas. Essa luta poderá pôr
em questão o próprio capitalismo? Na-
da o garante, mas esse partido me pare-
ce mais realista que o simples apelo à
consciência individual, na esperança
de que ela deseje “se emancipar de sua
própria psique narcisística” (p. 262).
Sem dúvida, Jappe tem razão ao
constatar que os dominados estão longe
de se opor o tempo todo ao sistema: tra-
ta-se, observa ele com justeza, do fenô-
meno da servidão voluntária já analisa-
do por Étienne de la Boétie. Mas é preciso
lembrar que o panf leto de La Boétie é, do
começo ao fim, um apelo aos dominados
para se revoltarem contra a tirania...
Essa revolta nunca deixou de estar
presente ao longo da história do capita-
lismo. Jappe menciona, e essa é uma
das hipóteses mais interessantes do li-
vro, que o movimento revolucionário
na Espanha, do fim do século XIX a
1939, foi motivado pelo choque entre os
antigos modos de vida e a lógica do ca-
pitalismo. Isso me parece bastante cor-
reto, mas creio que se aplique à maior
parte dos movimentos revolucionários
de nossa época, da Revolução Mexica-
na (1911-1919) ou da Revolução Russa
(1905-1917) ao movimento zapatista em
Chiapas, após a insurreição de 1994.
Aqui está, pois, um livro que coloca
questões essenciais e merece ser lido por
todos que se recusam a fazer as pazes
com um sistema que nos conduz, em ve-
locidade crescente, à autodestruição.
*Michael Löwy é pesquisador emérito do
Conselho Nacional de Pesquisas Científi-
cas da França (CNRS) e autor de diversas
obras publicadas e traduzidas em mais de
40 países.
SOCIEDADE AUTOFÁGICA
Em seu último livro, o filósofo Anselm Jappe, um dos representantes mais notáveis
e inovadores da escola da teoria do valor, analisa o capitalismo como um sistema
em que o valor mercantil impõe uma dominação abstrata, impessoal,
que esmaga tudo em seu caminho, como um trator monstruoso
POR MICHAEL LÖWY*
© Breno Tripi