Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

caminhando pela areia de volta para casa. Usando os mesmos sapatos de salto
imitando jacaré. Agora que ela e Pa estavam pescando e conversando, quem sabe
pudessem tentar ser uma família de novo. Pa tinha batido em todos eles, na
maioria das vezes quando estava bêbado. Passava alguns dias bem; eles comiam
frango ensopado. Certa vez tinham ido empinar uma pipa na praia. Então: bebia,
gritava, batia. Detalhes de algumas dessas vezes eram nítidos em sua lembrança.
Um dia, Pa havia empurrado Ma na parede da cozinha e a espancara até ela
desabar, encolhida, no chão. Soluçando para ele parar, Kya havia tocado seu
braço. Ele agarrara a filha pelos ombros, gritara para ela abaixar a calça jeans e a
calcinha, e a fizera se curvar por cima da mesa da cozinha. Com um movimento
fluido e experiente, tirou o cinto da calça e bateu nela. Claro que ela se lembrava
da dor quente cortando suas nádegas nuas, mas curiosamente se lembrava com
uma nitidez ainda maior da calça jeans embolada em volta dos tornozelos magros.
E de Ma encolhida no chão junto ao fogão, gritando. Kya não sabia qual era o
motivo de toda aquela briga.
Mas se Ma voltasse agora que Pa estava se comportando de modo decente,
talvez eles pudessem recomeçar. Kya jamais havia imaginado que seria Ma quem
partiria e Pa quem ficaria. Mas sabia que a mãe não iria abandoná-la para sempre;
se ela estivesse em algum lugar do mundo lá fora, iria voltar. Lembrava-se dos
lábios cheios e vermelhos quando Ma cantava acompanhando o rádio, e de ouvir
suas palavras: “Preste atenção no Sr. Orson Welles, viu? Ele fala direito, como um
homem decente. Nunca fale ‘num é’, isso não se diz.”
Ma havia desenhado os estuários e poentes em óleo e aquarela, desenhos tão
vívidos que pareciam destacados da terra. Trouxera alguns materiais de desenho, e
conseguia comprar uma coisa ou outra na Kress’s Five and Dime. Algumas vezes
Ma tinha deixado Kya fazer os próprios desenhos em sacos de papel pardo do
Piggly Wiggly.


*


No início de setembro daquele verão de pescaria, em uma tarde pálida de tão
quente, Kya foi até a caixa de correio no fim da estradinha. Enquanto folheava os
anúncios de mercearias, ficou petrificada ao ver um envelope azul endereçado
com a caligrafia bem-feita de Ma. Algumas folhas de sicômoro estavam ganhando
o mesmo tom de amarelo de quando ela fora embora. Todo aquele tempo sem
sinal de vida, e agora uma carta. Kya encarou o envelope, segurou-o na contraluz,
passou os dedos pela caligrafia oblíqua e perfeita. O coração esmurrava seu peito.
— Ma está viva. Morando em outro lugar. Por que não voltou para casa?
Pensou em rasgar o envelope e abrir a carta, mas a única palavra que conseguia
ler com certeza era o próprio nome, e ele não estava no envelope.
Ela correu até o barracão, mas Pa tinha ido a algum lugar com o barco. Então
apoiou a carta no saleiro em cima da mesa para ele ver. Enquanto cozinhava o
feijão-fradinho com cebola, ficou de olho na carta, com medo de ela desaparecer.
De tantos em tantos segundos, ela se encolhia junto à janela da cozinha numa

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