ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 39
Franco Raggi, La costruzione della Tenda Rossa (1975)
Couto, em sua homenagem?
Como fazia tudo calado e era um
homem de uma modéstia enorme,
quando morreu, recebemos umas
duas, três centenas de cartas de
jovens de vários pontos do país que
saudavam o facto de o meu pai os ter
ajudado a encontrarem na escrita um
grande prazer e a publicarem — o
meu pai foi também editor. E pensá-
mos que isso tinha de continuar. Criá-
mos a fundação para eternizar a obra
dele. Era uma maneira de ele não
morrer dentro de nós.
A fundação funciona com uma
equipa profissional?
Começámos de maneira muito ama-
dora, familiar, artesanal. A intenção
era mostrar que não íamos fazer como
os outros, pedir dinheiro e depois
fazer. Queríamos ter uma coisa para
mostrar, antes de bater à porta de
financiadores. A grande intenção no
segundo ano foi que o financiamento
que passámos a receber permitisse
contratar uma equipa profissional. E
agora temos uma equipa que mantém
um ritmo e uma dinâmica que nos faz
orgulhar muito daquela casa.
Qual é a filosofia da fundação?
Apoiar não só os jovens da área da
literatura, como o meu pai apoiava,
mas estender isso a músicos, fotógra-
fos, artistas de todas as áreas, fazendo
com que tenham ali um espaço e uma
possibilidade de encontro. Vem um
ceramista, pintor, fotógrafo, escultor
conhecido e ocupa aquele espaço de
exposição durante um mês. Com os
fundos que conseguimos, a seguir
convidamos um desconhecido. E
assim permitimos que o espaço seja
usado como trampolim para que
esses jovens possam ter visibilidade.
E fazemos isso na música, no teatro,
etc. A ideia é que, sejam consagrados,
sejam novatos, todos eles tenham um
momento em que contam a sua his-
tória. Portanto, aquilo é uma espécie
de fábrica de histórias. As pessoas
têm contacto com a obra e também o
contacto mais humanizado com o
autor da obra.
Lembra em O universo num grão
de areia que Terra Sonâmbula
foi o livro que mais lhe custou a
escrever, o que é que representa
para si esse livro hoje?
Foi o único livro que fiz em sofrimen-
to. Todos os livros me dão imenso
prazer a escrever, não sou daquele
tipo de gente que sofre imenso para
escrever, mas Terra Sonâmbula foi
feito numa situação muito particular:
a guerra estava ali, os meus colegas
mortos estavam na minha memória
e era como se fosse visitado por eles.
Não tinha maneira de resolver o luto
e esse livro foi uma forma de me liber-
tar. Foi a catarse que tinha de fazer do
horror dessa guerra.
Não voltou a esse livro?
Não tenho tentação de voltar a
nenhum livro, pelo contrário, dou
pontapés nesses personagens para
ver se me libertam. Não tenho os
livros construídos mentalmente, não
tenho uma arquitectura da história,
vou pelos personagens que me levam
pela mão, tenho uma relação de sedu-
ção com eles e se não me liberto dos
personagens estou sempre a contar a
mesma história.
Afirma neste livro que “a escrita
literária é uma sobrevivência da
necessidade de nos formarmos
caçadores”. É um caçador de
histórias?
A caça é um jogo de representações.
A única vez que fui à caça com alguém
profissional, vi como ele se transfor-
mava na própria presa, como se aban-
donava para perceber como a cabeça
do antílope que estava a caçar funcio-
nava. É um jogo fascinante. No fundo,
a literatura faz isso, é um jogo de
representações: queremos transfor-
mar-nos no personagem que estamos
a perseguir.
No livro fala no Jorge Amado e
na descoberta do português do
Brasil como forma de encontrar
a sua própria língua para contar
as histórias de Moçambique.
O Jorge Amado acendeu uma luz e
hoje, olhando para trás, esse portu-
guês que ele nos dá dessa forma,
apropriada, açucarada, já traz muito
de África. O português do Brasil é
diferente do de Portugal por grande
influência africana e, portanto, nós
estávamos a redescobrir uma coisa
que já era nossa. Mas os meus grandes
mestres são outros, o Guimarães
Rosa, o João Cabral de Melo Neto, um
pela via da poesia, o outro pela via da
prosa, mas uma prosa poética que
desconstrói a própria narrativa, a
maneira de ver o mundo.
Como é que se necessitou do
português do Brasil para
descobrir a forma de escrever
em Moçambique?
Os brasileiros, durante muitos anos,
tentaram marcar a diferença, dizer o
quanto eram diferentes numa língua
comum, que era a língua do outro.
Isso obrigou a um exercício da procu-
ra do diferente, mas de forma natural,
usando a língua portuguesa sem a
renegar, inscrevendo nela a dinâmica
que está dentro do português para
abraçar outras culturas.
E como é a sua relação com a lite-
ratura de Portugal?
Essa era a literatura que habitava a
nossa casa. O meu pai era muito dado
à poesia do Eugénio de Andrade, não
sei se por ser da mesma cidade. Do
Fernando Pessoa ao Mário Cesariny,
Mário de Sá-Carneiro, mas, sobre-
tudo, a Sophia de Mello Breyner — há
ali uma luz, um sentimento de espaço
que tem a ver com o mar e isso mar-
cou-me muito, muito, eu não seria
quem sou se não fosse essa literatura.
Marcou-nos muito porque nascemos
dentro dela.
Não sei onde está a fronteira entre o
biólogo e o escritor de histórias por-
que a biologia que faço é muito ligada
a pessoas. Eu não quero falar da pai-
sagem só enquanto elemento natural,
a paisagem é escrita e reescrita por
aquela gente. Na minha concepção
não existe uma árvore em si mesma,
existe uma árvore na relação com as
pessoas; e o mesmo para os bichos.
Portanto, como a ecologia nos sugere,
temos de encontrar a verdade das
coisas não por via de essências, mas
por via das relações. E é isso que a
literatura também nos diz, as pessoas
são o que são porque são parte de
uma rede. Este país é rico e é difícil
não ser escritor. Se as escutamos, as
histórias ultrapassam a realidade.
Que influência teve o seu pai na
sua escrita?
Muita. Sobretudo porque vivia de
maneira poética. Era muito pouco
normativo, era quase ausente, mas
quando morreu, nós, os três irmãos,
percebemos as grandes lições que nos
tinha dado sem nunca falar especifi-
camente nisso. Quando foi interroga-
do pela PIDE, ia todos os dias para o
interrogatório e nós percebíamos que
voltava amargo e sofrido, mas nunca
falou disso. Preferia dizer: no cami-
nho para cá vi um pelicano ou vi uma
garça. O modo dele era o de valorizar
aquilo que era pouco visível.
Como é que surgiu a ideia da
Fundação Fernando Leite