40 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
DANIEL ROCHA
Alberto Manguel,
71 anos, uma
vida a ler,
partilha
a intimidade
da sua leitura.
Apresentando
os seus heróis
imaginários.
É um livro
íntimo e político
Resistir com os
amigos literários
Isabel
lucas
S
e tivesse que escolher uma
personagem ficcional que o
definisse, Alberto Manguel
decidia-se pelo Capuchinho
Vermelho. Imaginada no fi-
nal do século XVII pelo fran-
cês Charles Perrault, foi o “primeiro
amor” de Charles Dickens e é “um
símbolo da liberdade do indivíduo”,
escreve o pensador e ensaísta argen-
tino no seu mais recente livro Mons-
tros Fabulosos, Drácula, Alice, Super-
Homem e Outros Amigos Literários,
conjunto 38 ensaios sobre 38 perso-
nagens da literatura. Além dos no-
mes do título, nele encontramos
Monsieur Bovary, Fausto, Gertrudes,
Phoebe, Queequeg, Quasimodo, o
avô de Heidi ou o Mandarim de Eça
de Queirós. Manguel chama-lhes os
seus “amigos imaginários” e no con-
junto ajudam a entender a multipli-
cidade de características que for-
mam o ser humano e, de modo mais
abrangente, o papel da imaginação
na longevidade da espécie.
“A imaginação é uma ferramenta
de sobrevivência; como o escorpião
desenvolve o veneno para sobrevi-
ver, o leopardo tem manchas para
sobreviver, o camaleão muda de cor
para sobreviver, a espécie humana
desenvolveu o poder da imaginação
para poder sobreviver em ambientes
perigosos. A imaginação é uma ajuda
para sobreviver nesses ambientes,
imaginando o que aconteceria se...”,
diz ao Ípsilon este leitor que cons-
truiu o seu percurso de escritor, rea-
gindo à leitura, ao que ela lhe instiga,
à espécie de inquirição que cada li-
vro lhe suscita. Neste livro, ode tão
erudita quanto humorada e clara ao
papel dos heróis literários partilha-
dos por um colectivo de leitores que,
individualmente, se relaciona com
cada um de maneira única.
Nessa singularidade, faz sua a bio-
grafia de Capuchinho Vermelho.
“Não podemos tornar-nos em quem
somos sem transgredir. O que Jung
chama de individuação acontece
quando se transgride”, afirma Man-
guel numa conversa sobre o papel
da imaginação na existência e da
fantasia como resultado do bom uso
da imaginação. Assim justifica a es-
colha de Capuchinho Vermelho
como o seu alter-ego fantasioso.
“Em criança eu adorava o facto de a
mãe da Capuchinho a mandar di-
recta a casa da avó e ela recusar-se.
Quando era criança eu não queria
obedecer a ordens. Se me davam
uma ordem eu queria saber porque
me estavam a dar aquela ordem.
Tive muita sorte porque a minha
ama, a mulher que tomava conta de
mim, não tinha a menor ideia de
como lidar com crianças, por isso
tratava-me como um adulto. Nunca
dizia: ‘Faz isto!’ Ela dizia: ‘Por favor,
fazes isto?’ Eu podia conversar com
ela quando tinha três, quatro ou
cinco anos. E gostava de reconhecer
isso no Capuchinho Vermelho. Ela
queria ir para a floresta apanhar flo-
res e bagas, estava consciente de que
o lobo podia ser perigoso, mas não
haveria aventura sem perigo. Eu sa-
bia isso enquanto criança. Não que-
remos uma vida simples, aborrecida.
Há uma expressão francesa normal-
mente usada com um sentido iró-
nico: la vie est un long fleuve tran-
quille. Nenhuma vida é um grande
rio tranquilo.”
Capuchinho Vermelho é um dos
amigos literários, ou imaginários,
que Manguel inclui no que considera
um dos seus livros mais íntimos. Nele
escreve: “Uma pessoa pode cons-
truir a sua autobiografia de muitas
maneiras: pelos lugares em que vi-
veu, pelos sonhos que teve e ainda
recorda, pelos encontros marcantes
com homens e mulheres imorredou-
ros, pela mera narração cronológica.
Sempre pensei na minha vida como
um virar de páginas de muitos livros.
As minhas leituras, as leituras que
formam a minha cartografia imagi-
nária, definem quase todas as mi-
nhas experiências íntimas, e consigo
associar praticamente tudo o que
julgo saber acerca das coisas essen-
ciais a um certo parágrafo ou frase.”
Ou seja, a sua experiência de mundo
veio, antes de tudo, dos livros e dos
que neles habitavam. Elabora esse
pensamento: “Os sonhos da ficção
engendram o mundo a que chama-
mos real”. E acrescenta: “Todas as
personagens literárias são como Pro-
meteu, a divindade marinha a quem
Poseidon concede o poder de se
transformar em qualquer forma do
universo.”
É o preâmbulo a essa intimidade
desvelada à medida que expõe a sua
relação com cada uma das persona-
gens que compõem Monstros Fabu-
losos. “Este é um dos meus livros
mais pessoais. Escolher persona-
gens de que queremos falar, os nos-
sos amigos imaginários, é um gesto
íntimo. Só lhe apresento os meus
amigos se sentir que pode ser minha
amiga. Não os vou apresentar a um
estranho nem vou explicar quem
sou. Nesse sentido este é um livro
íntimo. Quero que o leitor sinta que
lhe estou a dar as boas-vindas ao
meu mundo privado”, diz, de frente
para o Tejo, numa manhã cinzenta
Monstros
Fabulosos,
Drácula,
Alice,
Super-Homem
e Outros
Amigos
Literários
Alberto
Manguel
(Trad. Rita
Almeida
Simões)
Tinta da China
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