Público - 01.11.2019

(Ron) #1
ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 41

“FANTASIA


GALOPANTE”


Les Inrockuptibles


M12


O livro é uma ode tão erudita
quanto humorada ao papel dos
heróis literários partilhados por
um colectivo de leitores


“Temos uma


sociedade


consumista


e numa sociedade


de consumo não


podemos ter uma


imaginação activa


que questiona, que


escolhe por si


própria. Se tivermos


isso a economia


colapsa”


em que o rio não se distingue do céu
e tudo à volta parece bidimensional
como uma aguarela num livro.
Tudo remete para a infância. “A
infância de cada homem e de cada
mulher é diferente e a minha foi
muito solitária. Fui criado por uma
ama, não tive muita relação com os
meus pais nem com os meus irmãos.
Os meus companheiros eram os
meus livros. Aprendi a ler quando
tinha três anos e encontrei naquelas
personagens e nas suas aventuras
tudo o que me suscitava curiosi-
dade. Ia numa viagem marítima com
Simbad, construía uma casa eu
mesmo com Naughty, de Enid
Blyton, voaria pelos céus como Pe-
ter Pan ou desceria à toca do coelho
com Alice. Isso era muito real para
mim, era a minha vida. Esses amigos
imaginários nunca me abandona-
ram. Comecei a descobrir diferentes
perspectivas neles enquanto me
tornava uma pessoa diferente.
Quando se vai da infância à adoles-
cência, da adolescência à juventude,
da juventude à idade adulta,
vêem-se coisas novas no que já lá
estava antes. Os textos não muda-
ram, mas descobrem-se aspectos
que não víamos porque éramos
muito novos ou muito diferentes”,
contextualiza, lembrando que as
personagens não envelhecem. Nós
sim, e isso altera o modo como as
vamos percepcionando.
“Dizem-nos coisas diferentes por-
que ouvimos de forma diferente.
Nascem no momento em que as co-
nhecemos e não ficam velhas a não
ser na nossa imaginação. Não sei se
Narizinho seria capaz de sobreviver
no Brasil de Bolsonaro; não sei o que
aconteceria a Huckleberry Finn e a
Jim na América de Trump. Teriam
obrigatoriamente de encontrar no-
vas estratégias para sobreviver ou
seriam mortas, o que seria uma
grande probabilidade.”


Ler como acto político
Vivemos no mundo louco e absurdo
de Alice no País das Maravilhas, nota;
num desconcerto que nos causa o
mesmo espanto e perplexidade que
a personagem experimentou. “O
que sentimos, quando caímos com
Alice na toca do coelho e a seguimos
na viagem, é que a loucura do País
das Maravilhas não é arbitrária, nem
tão-pouco inocente”, lê-se num dos
textos mais políticos e críticos sobre
a actualidade, aquele que dedica à
criação de Lewis Carroll. Sobre isso,
afirma: “Ler é um acto político, seja
ou não conscientemente político.”
E, sublinhando a ideia de que o texto
não muda, mas a vida muda a nossa
relação com o texto, acrescenta:
“Quando era criança lia Alice na sua
relação com o absurdo do mundo
adulto que eu estava a confrontar;


os adultos davam-nos ordens, como
a Rainha Vermelha, ou contavam-
nos histórias com morais, como a
Duquesa, e tínhamos de aceitar.
Quando leio Alice na adolescência
estou preparado para o confronto:
queremos afirmar-nos apesar desse
absurdo. Mais tarde vi Alice como
um animal político; diante da grande
mesa posta para muitas pessoas,
com muita comida, ela quer sentar-
se e dizem-lhe que não há lugar. Ela
responde ‘claro que há’. É uma coisa
de que nos apercebemos na socie-
dade quando somos jovens, as pes-
soas passam fome, mas há comida,
as pessoas não têm casa, mas há edi-
fícios para toda a gente. Não aceita-
mos que o Chapeleiro Louco nos
diga que não há lugar. Queremos
fazer como Alice, sentarmo-nos
àquela mesa e dizer que temos de
partilhar.”
Estas personagens resistem ao
tempo em que foram criadas e a
qualquer tempo porque nasceram
da imaginação humana e reflectem
a essência do que é humano. São tão
resistentes que permitem leituras
revisionistas.
“A literatura permite leituras revi-
sionistas, mas enquanto leitores te-
mos de perceber que é sempre à
nossa leitura que temos acesso, não
à leitura que está no próprio texto.
Essa é apenas uma de muitas.
Shakespeare não podia adivinhar
uma leitura freudiana de Hamlet,
mas ela, de alguma forma, está lá. Há
uma diferença entre descobrir novos
aspectos numa velha história e
aquela história ter um significado
único para nós. O que muitas vezes
se tenta é impor o dogma”. Segundo
Manguel, o dogma não é do terreno
da literatura.
Como interpretar a tentação ac-
tual de muitos educadores que, em
nome do trauma ou da correcção,
desconfiam de alguns livros e algu-
mas personagens deste imaginário
colectivo? “Os pais têm muito medo
que a criança se torne independente.
A nossa sociedade quer que as crian-
ças sejam escravas. Nunca, desde os
dias de Cartago, uma sociedade su-
jeitou as suas crianças a tanto. Sacri-
ficamos as nossas crianças em nome
do nosso ganho financeiro e do nosso
prazer material; tornámos as escolas
em lugares de treino para fábricas e
escritórios e empresas. Uma escola
devia ser um lugar para a imaginação
correr livremente, onde se exerci-
tasse a imaginação como exercita-
mos o corpo num campo de jogos. A
expressão latina mens sana in cor-
pore sano significa uma imaginação
saudável num corpo saudável. Não
nos preocupamos com isso e quere-
mos que a literatura para crianças
seja mais constrita do que nos tem-
pos vitorianos. Os vitorianos tinham

uma literatura que apresentava ca-
minhos perigosos e no fim o bom
conseguia a sua recompensa e o mau
era castigado, e isso parecia-lhes
bem. Agora nem sequer fazemos isso
e muita da literatura para crianças
quer evitar que se fale de morte, de
agressão, violência, medo. Não é por
acaso que estamos a sofrer de uma
epidemia de autismo.”
Endurece o tom: “o que está a
acontecer agora é que muita dessa
fantasia - não toda - é guiada pela
forma das telenovelas, simplificada.
Não importa se é em Game of Thro-
nes ou uma série vulgar. As relações
são mais ou menos as mesmas e não
representam perigo para nós, não é
perigoso para nós, porque eles so-
frem, mas nós não estamos lá, esta-
mos apenas a vê-los sofrer. Construí-
mos uma forma de arte voyeuristica
que antes não estava tão presente.”
E porquê? “Porque temos uma socie-
dade consumista e numa sociedade
de consumo não podemos ter uma
imaginação activa que questiona,
que escolhe por si própria. Se tiver-
mos isso a economia colapsa. Temos
de ter arte de supermercado onde
somos guiados para escolher entre
dez marcas de cereais. A mente pre-
cisa de ser exercitada, que lhe seja
dito constantemente que é inteli-
gente e tudo na nossa sociedade diz
à mente que ela não é inteligente.
Não é suficientemente inteligente
para ler Lobo Antunes, para ver os
filmes de Bergman pi para a arte de
Rothko. Vê televisão é e tudo o que
queres e mereces.”
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