Vingança a Sangue-Frio

(Carla ScalaEjcveS) #1

ondas negras a embaterem contra rochas macias, que brilhavam
esbranquiçadas à luz de um quarto crescente. Atravessaram erva alta e
molhada que se agarrava às pernas de Harry como se não as quisesse soltar,
mas Gregor só parou quando os Doc Martens de Harry começaram a pisar
areia e pedras. O coto arredondado que era a cauda de Gregor apontou para
cima. Estavam na praia. A maré estava alta; as ondas quase chegavam à erva
rígida e borbulhavam como se houvesse dióxido de carbono na espuma que
ficava na areia quando a água se retirava. Gregor recomeçou a ladrar.


– Foi a algum lado de barco? – perguntou Harry, meio para Gregor meio
para si mesmo. – Estava sozinho ou tinha companhia?


Não obteve resposta para nenhuma das perguntas. No entanto, percebeu que
o rasto terminava ali. Enquanto Harry puxava pela trela, o enorme Rottweiler
recusava mexer-se. Por isso, Harry acendeu a sua Maglite e fez o feixe de luz
incidir no mar. Apenas viu fileiras de ondas brancas, como linhas de cocaína
sobre um espelho negro. Era-lhe óbvio que, debaixo de água, o solo se
inclinava ligeiramente. Harry voltou a puxar a trela, mas depois com um uivo
desesperado o cão começou a escavar a areia com as patas.


Harry suspirou, desligou a lanterna e regressou ao chalé. Na cozinha,
serviu-se de uma chávena de café e ouviu o ladrar distante. Depois de lavar a
chávena, voltou a descer até à praia e encontrou um intervalo entre as rochas
onde se sentar ao abrigo do vento. Acendeu um cigarro e tentou pensar. De
seguida, apertou melhor o casaco e fechou os olhos.


Uma noite em que estavam na cama, Anna dissera uma coisa. Devia ter
sido perto do final das seis semanas – e ele devia estar mais sóbrio do que
habitual, porque se conseguia lembrar disso. Anna dissera que a sua cama era
um navio, e que ela e Harry eram dois náufragos, pessoas solitárias à deriva
no mar, aterrorizadas por poderem avistar terra. Fora isso que acontecera a
seguir? Teriam avistado terra? Não se lembrava disso daquela maneira.
Parecia-lhe que saltara do navio, que saltara borda fora. Talvez a sua memória
lhe estivesse a pregar partidas.


Fechou os olhos e tentou conjurar uma imagem dela. Não do tempo em que
eram náufragos, mas da última vez em que a vira. Tinham comido juntos.
Aparentemente. Ela enchera-lhe o copo – fora vinho? Ele tinha-o bebido?
Aparentemente. Voltara a servi-lo. Ele perdera o controle das coisas. Deixara
cair o copo. Ela rira-se. Beijara-o. Dançara para ele. Segredara-lhe as suas
habituais insignificâncias doces ao ouvido. Tinham-se deitado na cama e
partido. Teria aquilo sido assim tão fácil para ela? Ou para ele?

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