– Vinte e um – gemeu ela.
– Isto não é libertador? – disse Harry. – Quando percebemos, por fim, que
não temos nada a perder. Faz com que todas as decisões se tornem muito mais
fáceis.
– Você está a fazer bluff.
– Estou?
Harry encostou a arma ao antebraço esquerdo e disparou. O tiro soou alto e
agudo. Alguns décimos de um segundo passaram, antes que o eco vindo dos
edifícios altos se abatesse sobre eles. Trond olhou-o. Uma orla denteada
cercava o buraco no blusão de cabedal do polícia, e um tufo de lã branca
saído do forro sacudiu-se ao vento. O sangue pingava pelo buraco. Gotas
vermelhas, pesadas, atingiram o chão com o som de um tiquetaque abafado, e
desapareceram na mistura de argila e relva apodrecida para serem absorvidas
pelo solo.
– Vinte e dois.
As gotas aumentaram e caíram cada vez com maior rapidez, a soarem como
um metrónomo acelerado. Harry levantou a arma, enfiou o cano através de
um intervalo na vedação metálica e apontou.
– É assim que se parece o meu sangue, Trond – disse, numa voz tão baixa
que mal se ouvia. – Vamos ver como é o teu?
Nesse momento, as nuvens taparam o Sol.
– Vinte e três.
Uma sombra escura caiu como um muro a oeste, primeiro sobre os campos,
depois sobre as casas com terraços, os blocos, a argila vermelha e as três
pessoas. A temperatura também caiu. Como uma pedra, como se a barreira em
frente da luz não cortasse apenas o calor mas também irradiasse frio. Mas
Trond não reparou nisso. Tudo o que sentiu e viu foram os arquejos curtos e
rápidos da mulher polícia, o seu rosto macilento, sem expressão e o cano da
arma do polícia a olhar para ele como um olho negro que encontrara por fim
aquilo que procurava e já estivesse a perfurá-lo, a dissecá-lo e a devorá-lo. O
trovão distante ribombou. Mas ele apenas ouviu o som do sangue. A carne do
polícia estava aberta e o conteúdo despejava-se. O sangue, as entranhas, a sua
vida a pingar ruidosamente na relva. Não estava a ser devorado; era aquilo
que devorava, queimava no seu percurso em direcção ao solo. Trond sabia
que mesmo que fechasse os olhos e cobrisse os ouvidos, ainda conseguiria
ouvir o próprio sangue a acelerar-se nas orelhas, a cantar e a latejar para sair.