A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

cartas com o vapor da chaleira elétrica. Quando a água fervia, abríamos com
muito jeitinho , líamos e depois tornávamos a fechá-las.»
Naqueles anos, as criadas da casa sabiam ler e escrever. Maria tinha
dificuldades. «Ela mal sabia escrever e também não lia muito bem.»
A governanta embirrava especialmente com a correspondência de Rosália,
talvez pelo facto de a rapariga estar na idade dos primeiros encantamentos.
«Apanhava as cartas na escrivaninha do vão de escada, lia tudo e só depois é
que mas dava. Fazia isso com todas, mas mais vezes comigo.»
Nos telefonemas, as criadas usavam da mesma cumplicidade para contornar
a vigilância. Aproveitavam-se das ausências de Maria e ligavam para a terra.
«Dantes atendiam primeiro as telefonistas, a quem pedíamos para fazer a
chamada. Elas já nos conheciam. Eu ligava para a dona Adélia, padeira, a única
que tinha telefone em Favaios. Depois, lá vinham a minha mãe e a minha irmã.
Falávamos todas as semanas, mas sempre às escondidas da dona Maria.»
Felizmente, «o ambiente era bom entre as empregadas. Dávamo-nos bem, era
o que valia», recorda Rosália.
Três ou quatro eram de Penela, a terra da governanta. «Ela é que metia quem
queria, o senhor doutor só depois vinha a saber. Ele tinha de confiar, pois ela
não gostava que ele andasse a meter-se nas responsabilidades dela. Por vezes, a
gente enchia-se da criatura, era um regime complicado, mas pronto... Mal por
mal, mais valia estar ali.»
Por vezes, viam-na contente, capaz até de uma afeição ou presente em
momentos festivos. As empregadas também sabiam que Maria «virava como os
sinos». Tinha alturas «em que era muito boa para mim, mas por vezes também
lhe dava para ser ranhosa, não se podia aturar.»
Gestos e atitudes que marcavam o terreno. No elevador, «ele, que era tão
importante, não nos obrigava a sair para entrar». Mas tratando-se da
governanta, «tínhamos todas de sair para ela entrar sozinha».
A mãe de Rosália dera a Maria poder total sobre a filha.
Mas o regime de clausura não a diferenciava das outras.
A jovem é autorizada a espairecer nas tardes de domingo, cada 15 dias. Mas
apenas na companhia da família. «Está aqui o irmão da menina Rosália»,
anunciavam os porteiros.
«Ele que entre que eu quero ver se é mesmo ele», respondia, de dentro, a
governanta. «Depois, ficava à janela a ver.»
Nessas ocasiões, a rapariga ia até à feira popular, passeava pelos parques,
comia gelados. Mas a trela continuava curta. Os irmãos e outros familiares

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