A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

comercializava usando a moeda do inimigo. Por sugestão de Jalal Nasser, Natalie
trouxera da França várias centenas de dólares. O dinheiro abria muitas portas, atrás das
quais havia armazéns cheios de arroz, feijões, azeitonas e até um pouco de carne. Para


quem estivesse disposto a arriscar a ira da temida husbah, a polícia da xaria[*], havia
também cigarros e álcool disponíveis no mercado negro. A punição por fumar ou beber
era severa — o açoite, a cruz, o cepo. Natalie, certa vez, viu um husbah açoitando um
homem por xingar. Falar palavrão era haram.
Entrar nas ruas de Raqqa era entrar num mundo enlouquecido. Os semáforos não
funcionavam, não sem eletricidade, então, os guardas de trânsito controlavam os
cruzamentos. Eles carregavam revólveres, mas não apitos, porque apitos eram haram.
Fotografias de modelos em vitrines tinham sido retocadas para aderir aos restritos
códigos de decência do ISIS. Os rostos eram pintados de preto, porque era haram
representar humanos ou animais, criações de Deus, e pendurá-los em uma parede. As
estátuas de dois camponeses em cima da famosa torre do relógio de Raqqa também
tinham sido retocadas — e as cabeças, removidas. A praça Na’eem, outrora amada pelas
crianças de Raqqa, agora estava cheia de cabeças decepadas, não de pedra, mas humanas.
Olhavam em luto das estacas de uma cerca de ferro soldados sírios, lutadores curdos,
traidores, sabotadores, ex-reféns. A força aérea síria bombardeava o parque
frequentemente em retaliação. Assim era a vida no califado: bombas caindo em cabeças
decepadas, em um parque onde antigamente crianças costumavam brincar.
Era um mundo negro, negro em espírito, negro em cor. Bandeiras negras eram
hasteadas em cada prédio e poste de iluminação, homens de uniformes negros de ninja
desfilavam pelas ruas, mulheres de abayas negros caminhavam como fantasmas negros
pelos mercados. Natalie tinha recebido seu abaya logo depois de cruzar a fronteira turca.
Era uma veste pesada e áspera que caía nela como um lençol jogado sobre um móvel.
Embaixo, ela só usava preto, pois todas as outras cores, até o marrom, eram haram e
podiam provocar um espancamento pela husbah. O véu facial deixava seus traços
praticamente irreconhecíveis e, através dele, Natalie via um mundo borrado de um cinza-
carvão turvo. No calor do meio da tarde, ela se sentia presa dentro de seu forno
particular, assando lentamente, uma iguaria do ISIS. O abaya representava um perigo, o
perigo de que ela se acreditasse invisível. Ela não sucumbiu a ele. Sabia que sempre a
estavam observando.
O ISIS não era o único a alterar a paisagem urbana de Raqqa. A força aérea síria e
seus cúmplices russos bombardeavam durante o dia, os americanos e seus parceiros de
coalizão, à noite. Havia danos por todo lado: prédios demolidos, carros e caminhões
incendiados, tanques e veículos blindados de transporte de pessoal enegrecidos. O ISIS
reagia à campanha aérea escondendo seus soldados e seu armamento entre a população
civil. O térreo do prédio de Natalie estava cheio de balas, projéteis de artilharia, granadas
lançadas por foguete e armas de todo tipo. Soldados do ISIS barbudos e vestidos de
preto usavam o segundo e terceiro andares como quartel. Alguns eram sírios, mas a
maioria era de sauditas, egípcios, tunisianos ou guerreiros islâmicos de olhos

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