O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Atravessaram os musseques e ultrapassaram a periferia de Luanda sem
contratempos. O motor do jipe, as janelas abertas, faziam tanto barulho que se
tornava impraticável manter uma conversa amena. Eles iam tensos,
concentrados na estrada, a tentarem antecipar uma emboscada, silenciosos,
imersos em pensamentos sombrios. Regina apoiava no tablier uma das suas
botas de pele bege, de cano curto, e roía as unhas sem dar por isso, enquanto
os olhos inquietos perscrutavam o horizonte por detrás de uns óculos de sol.
Só rompeu o silêncio uma vez para lhe perguntar trouxeste cigarros? Se
trouxe cigarros? Claro que trouxe, trouxe montes de cigarros. Vê aí no porta-
luvas. Ela abriu a portinhola à sua frente, que se deitava para baixo como uma
mesinha de avião, para onde resvalaram vários maços de tabaco. Ena!,
exclamou, estavas a pensar numa viagem de um mês? Nada disso, explicou-
lhe, por aquelas bandas os cigarros eram valiosos, ela nem imaginava o que
uma mão cheia de cigarros podia fazer por eles. Sim?, perguntou, perplexa.
Sim, respondeu Patrício, os cigarros faziam amigos, podiam até salvar-lhes a
vida. Regina encolheu os ombros, normalmente matam, comentou. Abriu um
maço, substituiu os nervos das unhas pelo vício do tabaco, remeteu-se ao
silêncio. Ele observou-a de esguelha. Trazia uma camisa caqui entalada nuns
jeans justos, o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, como Patrício a
recordava sempre, e era demasiado bonita para ele deixar de reparar. Tinha
um fraquinho por ela, não era de agora, mas os últimos dias, tão intensos e
inquietantes... abanou a cabeça para afastar o pensamento. Precisava de se
concentrar na condução.


Estavam quase a chegar ao destino e, até ali, a viagem decorrera sem
nenhum incidente. Para surpresa de Patrício, foi como Regina previra, um
passeio rápido sem novidades de maior. Aparentemente, a palavra imprensa
inscrita nas portas do jipe constituía um salvo-conduto seguro para se
percorrer as zonas militarizadas sem se ser incomodado. Abandonaram a
estrada principal três quilómetros antes da ponte sobre o rio Bengo. A frente
de batalha fixava-se algures num lugar incerto entre o Caxito, mais a norte, e
o Quifangondo. As notícias eram escassas e pouco precisas, o que se sabia era
que a coluna da FNLA estava muito perto de Luanda. E de facto, quando se
internaram por uma estrada de terra batida que seguia para leste, começaram a
ouvir os estrondos surdos da artilharia.


Pelas   suas    contas, tinham  três    quilómetros de  caminho empoeirado  até à
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