O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

castanha com motivos tribais e uns óculos de sol espelhados; o outro vinha
com uma camisola do Benfica. Ambos envergavam calças encardidas, curtas
e esfiapadas acima dos tornozelos, descalços, qual náufragos do sertão.
Passaram pelo lado de Regina sem se lhe dirigirem, falando entre eles em
quimbundo, rodearam o jipe por trás, aproximaram-se da janela de Patrício.


— Dócumento — disse o dos óculos de sol.
Patrício assentiu com a cabeça e passou-lhe o cartão de imprensa. O tipo
revirou-o nos dedos como se fosse um insulto e atirou-o de volta para o colo
dele com um piparote que não era bom sinal.


— Dó-cu-men-to — repetiu, mas desta vez num tom mais duro e mais
pausado, como se falasse a uma criança que não entendesse bem a palavra.


Patrício mostrou-lhe o bilhete de identidade, que ele revirou com o mesmo
desprezo e devolveu tal como fizera anteriormente. E Regina não
compreendia porque é que Patrício não lhe apresentava o passe que trazia
dobrado no bolso da camisa.


— Vão onde? — perguntou o soldado.
— Vamos à fazenda ali à frente — explicou Patrício.
Os soldados trocaram um olhar significativo, de quem não tinha gostado da
resposta, e puseram-se a discutir entre eles em quimbundo. Patrício respirou
fundo, rezou para não dizer a palavra errada e chamou-os, abrindo a porta.


— Camaradas, camaradas — disse, saindo do jipe. — Nós não somos
amigos do branco, somos jornalistas.


Os outros dois acalmaram-se instantaneamente e, quando Regina deu pela
coisa, já estavam todos sorrisos a darem palmadas nas costas de Patrício e a
dizerem camarada, camarada. Patrício fazia o mesmo, aliviado por não se ter
enganado. Se, por azar, fossem homens da FNLA ou da UNITA, o ambiente
teria azedado ao ponto de darem um tiro a cada um. Os homens do MPLA
eram camaradas , os outros diziam-se irmãos e, pelo aspecto, não havia como
distinguir uns dos outros. A zona onde se encontravam também não era
garantia de nada, porque a guerra em Angola era suficientemente volúvel e os
territórios tão extensos e abandonados que qualquer um montava um posto de
controlo em qualquer lugar, independentemente de se encontrar deste ou
daquele lado da linha da frente. Mas, agora que tinha a sua resposta, Patrício
apresentou o passe assinado pelo seu amigo oficial das FAPLA. Deixou o
camarada de óculos de sol a admirar a folha com as letras viradas ao contrário
e inclinou-se para dentro do carro.

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