O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Ele pensara que não se lembrava de um dia tão mau como aquele da ida à
fazenda de Silva Pinho, mas hoje estava a descobrir que era sempre possível
arranjar-se qualquer coisa ainda pior. Mais uma vez Patrício tinha a incómoda
percepção de que as mágoas de espírito eram infinitamente mais devastadoras
do que um tiro no coração. Entrou na redacção e descobriu com surpresa que
estava às moscas, como se fosse um fim-de-semana normal. As velhas
secretárias de madeira riscada por anos de uso, com as suas pesadas e
resistentes máquinas de escrever em cima, não tinham ninguém. Restavam
dois ou três jornalistas pelo edifício, um deles, o único na redacção,
mergulhado na notícia que batia à máquina para ler no próximo intercalar.


— Boa tarde — saudou-o Patrício quando entrou.
— ... tarde — disse o outro, sem levantar a cabeça.
— Onde é que está toda a gente?
— Andam por aí — respondeu o jornalista, concentrado na sua notícia,
pondo-lhe um ponto final e passando-a em revista com os olhos ao mesmo
tempo que retirava a folha da máquina e se recostava na cadeira, acendendo
um cigarro com um Zippo manobrado pela mão direita. Fechou a tampa do
isqueiro com um barulho metálico, seco, de guilhotina a cair. E quando
Patrício voltou a olhar para ele, o tipo tinha desaparecido momentaneamente
numa nuvem de fumo.


— Foste tu que recebeste este recado? — perguntou-lhe Patrício, perplexo
com um papel na mão, encontrado em cima da sua secretária. O outro olhou
para ele de olhos cerrados por causa do fumo.


— Fui — acabou por confirmar.
— Quando?
— Aí há umas duas ou três horas. — Patrício fuzilou-o com uma falta de
paciência para respostas dúbias.


—   Duas    ou  três,   porra?!
O tipo abanou a cabeça irritado e retorquiu-lhe na mesma moeda.
— Duas e meia, pronto.
— Quem telefonou não disse quem era?
— Hum-hum...
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