Psique - Edição 156 (2019-02)

(Antfer) #1

dossiê


40 psique ciência&vida http://www.portalespacodosaber.com.br

Em pensamentos,


reformulamos o


mundo de forma


afável, somos


carismáticos conosco


mesmos, maquiamos


narcisicamente


nossa condição,


ensimesmamos


fetiches de salvação.


Penso, logo egoísmo


festa marcante, num show,
compra-se o ingresso meses
antes, por exemplo, pensa-
-se como será bom, deleita-
-se, traça-se o que fazer, com
quem fazer e como fazer,
gozam-se maravilhas no pen-
samento, perdem-se noites
de sono e quando está para
chegar a hora já se esvaziou
aquela expectativa criada
e um desânimo emerge. O
pensamento aqui não saiu do
ensaio e ficar nele garante ao
sujeito que a ação não atrapa-
lhe a delícia construída por
ele. Outro exemplo do pensa-
mento como realização em si
mesmo, se assim podemos di-
zer, é quando uma pessoa vai
caminhando em direção ao
seu patrão, e o patrão em di-
reção à pessoa, e ela pensan-
do: “Vou pedir aumento, vou
pedir aumento, vou pedir...” o
patrão passa e ela “eu deveria
ter pedido aumento, deveria
ter pedido!” O pensamento esta-
va montado, ela sabia o que fazer,
mas algo maior na história daque-
la pessoa fez com que ela, frente a
um lugar de poder, recuasse em seu
propósito.
Outra forma de utilizar o pensa-
mento como modo de ser feliz, ou
de despistar tristeza, ou de tentar se
garantir que se prova ineficiente ou
demasiado limitado é quando a pes-
soa tenta conduzir sentimentos pelo
pensamento. Até dizem “vai namo-
rar com ele mesmo? Pensou direi-
to?”, “Gosta dela mesmo? Tem que
pensar duas vezes”. Como se uma
forma de pensamento, de interpre-
tação fosse capaz de garantir uma
felicidade e prevenir o sujeito de
embaraços. Na lógica reacional, há
quem, em luto, sofrendo pelo térmi-
no, diga a si mesmo e reafirme reite-
radas vezes: “Não vou me apaixonar,
não vou me apaixonar, não vou...” IMAGENS: SHUTTERSTOCK

MAX HALBERSTADT WIKIMEDIA COMONS

e quando menos se espera, quan-
do percebe, já está sendo levado a
uma relação. Algo aqui escapa. Algo
conduz. Esse fetiche do pensamen-
to, como forma motriz de garantia
de felicidade, tem a consequência
de limitar o sujeito. Obviamente, o

pensamento é importante. No
entanto, é mais óbvio ainda
termos que indagar o óbvio
para não ficarmos reféns do
mundo. Como ser senhor de
seus pensamentos é uma inte-
ressante questão. Pensamen-
tos lapidados, sedutores, sem
furos servem para? Acomo-
dar-se em demasia assassina
o desejo, estrangula a fabri-
cação de si. Na obsessividade
do pensamento podemos falar
em um “penso, logo desisto”.
Para outros, “penso, logo pro-
crastino”. E, ainda, “penso,
logo suporto”. Tudo isso não
anula a epígrafe famosa do
“penso, logo existo”, porém é
preciso saber que existimos
fora do pensamento.
Por essas supracitadas vias
podemos pensar em ao menos
dois usos distintos do pensa-
mento: aquele ao qual se é le-
vado pela ilusão e ao qual se é
impelido ao se mover, devido
ao surgimento de um desassossego.
Um pensamento que finda e um pen-
samento que funda o comprometi-
mento. A diferença está na posição
do sujeito. No primeiro, o sujeito
se coloca como passivo da atuação,
refém das conspirações do univer-
so, sufoca sua existência singular e
se faz objeto dos rotacionais movi-
mentos de forças maiores. Ativa um
suposto e confortante controle, pois
sabe o que fazer por e com ele. Este
controla tudo pela mente, pelo seu
credo, nada pode fazer além disso,
de aceitar, de receber, logo nada faz
para que se realize, deixa à mercê do
querer alheio da força maior cha-
mada de destino. Anula em si que
destino é construção e que estamos
fadados a repetição se não tratarmos
de analisá-lo. Desvirtua o seu dese-
jo, sequer deseja, pois desejar é ser
rotacional em outro ritmo e ali não
se permite tal injúria.

Para Freud, “a vida é árdua demais para nós, proporciona-nos
muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis”

DOSSIE.indd 40 29/01/2019 15:42

Free download pdf