National Geographic - Portugal - Edição 228 (2020-03)

(Antfer) #1
A NOVA VAGA DE INCÊNDIOS 99

A partir do início do século XX, porém (com um
pico registado na década de 1950), esse padrão so-
freu uma alteração. No início do século XX, 2% do
território português encontrava-se arborizado.
No final do século XX, essa percentagem dispa-
rara para quase um terço. No artigo “Is Portugal’s
forest transition going up in smoke?” (“Land Use
Policy”, 2017), Tiago Oliveira e colegas encontram
explicações sistémicas para a modificação gra-
dual do uso do solo: na década de 1950, os ma-
teriais sintéticos produzidos a partir do petróleo
substituíram as fibras vegetais e animais e os sol-
ventes e adubos químicos à base de petróleo e quí-
micos inorgânicos substituíram produtos flores-
tais tradicionais como o breu, a turfa ou a caruma.
A pecuária industrial substituiu a carne obtida
através da caça ou da criação de animais do-
mésticos que pastavam no mato ou na floresta.
À medida que os habitantes do mundo rural
abandonaram o território que outrora satisfi-
zera as suas necessidades essenciais, as árvores
regressaram e com elas os incêndios.
Para a bombeira Filipa Rodrigues, esse padrão,
a que os geógrafos chamam “transição florestal”
(o regresso da floresta às regiões agrícolas aban-
donadas) pode ser resumido numa única estatís-
tica bem palpável: quando o seu pai se apresentou
como voluntário na sede dos bombeiros, na déca-
da de 1980, “trabalhavam lá 20 profissionais”. Ago-
ra há sete. Durante mais de um século, as monta-
nhas foram-se esvaziando de população. Filhos,
irmãs, primos, desceram da montanha e partiram



  • primeiro para Lisboa e dali para a Europa Cen-
    tral, para o Canadá, a África do Sul ou para o Brasil.
    “Temos um problema nas terras montanho-
    sas e esse problema são as pessoas”, resume o
    bombeiro voluntário Hugo Carvalho, que traba-
    lhou como carteiro na vila vizinha de Proença-a-
    -Nova, vendo os velhos a morrer ou a abandonar
    a terra e as luzes da vila a apagarem-se.
    As árvores instalaram-se em baldios e campos
    abandonados, encostando-se à erva alta e aos
    arbustos que facilmente se incendeiam, secan-
    do com o calor do Verão e transformando-se em
    combustível. Desceram pelos novos corredores
    verdes e entraram nas casas vazias, apontadas
    como lanças ao centro das povoações, com as
    suas sementes a espalharem-se pela acção dos
    ventos fortes provenientes do Atlântico.
    No entanto, ao contrário das florestas primi-
    tivas da Antiguidade, estas novas florestas eram
    as descendentes silvestres, parcialmente selva-
    gens e com contributos das florestas de pinhei-


ro-bravo e de acácias e eucaliptos importados
da Austrália. Por outras palavras: três espécies
arbóreas de crescimento rápido, carregadas de
óleos essenciais, cuja evolução as preparou para
se disseminarem com os incêndios florestais.
Quando os incêndios intensos começaram a
lavrar em extensões de terreno cada vez maiores
do interior, o Estado português “viu-se prisio-
neiro da armadilha do combate aos incêndios”,
afirma Tiago Oliveira. Perante a indignação da
opinião pública, exigindo medidas proporcio-
nais, o Parlamento português aprovou novas
leis, comprou equipamento novo e apressou-se
a optimizar meios para “eliminar” os pequenos
incêndios com potencial para se transformarem
em incêndios de maiores dimensões.
Entretanto, os problemas mais importantes do
mundo rural abandonado, da sazonalidade dos
bombeiros voluntários e do território repleto de
espécies arbóreas facilmente inflamáveis ficaram
por resolver, apesar de um primeiro aviso ocorri-
do no Verão de 2003. No Verão de 2017, após mais
de uma década de eliminação agressiva de incên-
dios de pequena extensão pelos bombeiros, o in-
terior encontrava-se carregado de combustível, à
espera de uma faísca que ateasse o fogo.

NO DIA 17 DE JUNHO DE 2017, essa faísca chegou
numa série de incêndios ateados nos vales em
redor da vila de Pedrógão Grande, alimentados
por ventos fortes, soprados por uma estranha tro-
voada extemporânea, que funcionaram como um
fole, espalhando as chamas em três enormes fren-
tes separadas de incêndio.
Nessa tarde de Junho, Filipa Rodrigues e os
outros membros da sua equipa de bombeiros ti-
nham acabado de apagar um pequeno incêndio
com as suas mangueiras de alta pressão. Quan-
do subiam a montanha na direcção de Pedrógão
Grande, Filipa apercebeu-se de que a noite esta-
va a cair cedo: havia tanta fuligem na atmosfera
que o céu enegrecera.
Não o sabiam ainda, mas encaminhavam-se
para um braseiro que pouca gente na Europa
alguma vez vira. Uma dessas raras pessoas era
o cientista de incêndios Marc Castellnou, pro-
fissional da Catalunha, na vizinha Espanha.
Na qualidade de cientista principal do corpo
profissional de bombeiros da Catalunha, Marc
sentira-se perturbado, à semelhança do seu ho-
mólogo português, Tiago Oliveira, pelo apareci-
mento de incêndios com uma força e um poder
destrutivo nunca antes vistos.
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