impreciso, tão silencioso apesar dos tiros, das bielas, dos gritos, de um helicanhão às
voltas, de um turra a tentar vestir o uniforme de um sul africano tombado sobre um
barrote e fugir a esmagar-lhe a catana no peito, a minha mãe a sacudir-me na casa de
Lisboa
- Não chores
sem que eu estivesse a chorar, em lugar de quimbos uma cadeira com a minha roupa,
em lugar do sol a lâmpada apagada do teto, em lugar de árvores os automóveis lá fora,
eu ao colo dela a procurar-lhe o peito não vazio, com leite ou o que pensava ser leite,
eu para a minha mãe - Tire-me de África senhora
imitando o meu pai para o psicólogo no círculo de cadeiras do hospital - Tire-me de África senhor
tire-me de África e garanta-me que nunca estive lá, nunca assisti àqueles crepúsculos,
àquela chuva, àquele vento no capim, àqueles morcegos nas mangueiras, àquelas
chanas semeadas de luzinhas à noite, o meu pai quase numa voz de criança - Por que razão não estou aqui com vocês?
porque não marcho lento e à vontade, porque não consigo escapar-me, adormecer
sem o receio que me acordem a chamar - Meu alferes
sem tropas a colocarem o cano da gê três sob o pescoço antes de anunciarem - Até já meu alferes
e passar o resto da noite a lavar o teto de zinco de pedacinhos de osso, os meus pais
com um papel na mão - É para ti
entregando-mo sem mo quererem entregar ou deixando-o num ângulo da mesa à
espera que eu o lesse - Vejo nos vossos semblan
por que motivo o meu irmão, morto num acidente de automóvel, não me vem ajudar
poisando-me a mão no ombro prometendo-me - Ficas aqui comigo
nas suas espreguiçadeiras, nas suas estatuetas, no cheiro cor-de-rosa do seu
perfume, não me despi no quarto de pensão com a mulher dos anéis, fiquei ao lado dele,
não em Luanda, na casa da aldeia, sentindo o porco comer na rua a seguir, sentindo a
sua mão na minha cabeça - Estou aqui
vendo-o cruzar as pernas como as mulheres as cruzam, acenar-me como as mulheres
acenam, poisando a minha cara no seu colo como as mulheres as poisam, afagando-me
a bochecha - Mano
com dedos tão delicados, tão femininos, tão doces, o meu pai desprezava-o tentando
não o desprezar, a minha mãe procedia como se não reparasse, a minha filha ficava a
olhar para nós não num tripé longe da gente, perto, a minha filha, pela primeira vez não
indiferente - Os meus homens