António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Hoje que é o último jantar antes da matança do porco a minha filha dignou-se comer
conosco à mesa, quer dizer acrescentou um prato para ela e sentou-se num ângulo da
toalha entre a minha nora e a minha mulher, aceitou um guardanapo, aceitou que a
servíssemos, esperou que eu pegasse nos talheres para começar, a cara finalmente
parecida com a nossa, não fechada, normal, os cotovelos não poisados na toalha, os
antebraços apenas, os gestos sem ângulos, as feições tranquilas, a minha mulher feliz, o
meu filho a sorrir-lhe e os olhos dela não fugiram, aceitaram o sorriso sem voltar a
cabeça, sem se ir embora, a nespereira negra contra a janela fechada, nenhuma luz lá
fora, só nós neste mundo, uma ou outra lanterninha no cemitério mas distante, a
tremer, depois o vulto quieto da serra, toda a minha família comigo e eu tão contente
senhores, a minha mulher poisou por um momento a mão na nuca da minha filha e ela
consentiu, quer dizer teve o reflexo de encolher-se mas desistiu logo, a minha mulher
aproveitou para lhe afastar as espinhas para a borda do prato numa delicadeza rápida e
ela consentiu também, o meu pai sempre quis que a matança do porco fosse uma festa
e vai ser, não me esqueço do contentamento com que nos olhava nesse dia, sentava-se
de chapéu, gravata e corrente do relógio a atravessar-lhe o colete, a minha avó, sempre
de luto, com o anel que guardava na caixinha posto no dedo a aperfeiçoar-lhe os gestos,
o compadre do meu pai a erguer o copo de moscatel



  • Sim senhor sim senhor
    de botão do colarinho fechado por cerimônia e respeito, no termo da refeição o meu
    pai dava o jantar por acabado indo urinar no quintal, víamo-lo de costas e pernas
    afastadas, com uma bissetriz reluzente no ângulo das calças e depois do meu pai se
    libertar da última gota, peremptória e solene, e arrumar o aparelho que a vertera no
    estojo da braguilha, operação demorada, cheia de sacudidelas e movimentos laterais,
    sentamo-nos em tijolos na horta, entre a nespereira e as couves, quase invisíveis uns
    para os outros, a respirar o escuro numa satisfação silenciosa, com a paz dos mortos a
    chegar do cemitério juntamente com as palpitações com que as galinhas mudam a
    direção dos sonhos nos poleiros, sentíamo-nos eternos nessas noites em que o ar
    entrava e saía de nós sem ser pela boca, através da pele porque os nossos corpos eram
    de súbito permeáveis a tudo, a certa altura dei conta que a minha filha, que continuava
    com a gente, sorria não para nós, para si mesma e tão diferente assim, quase bonita,
    satisfeita por estarmos todos juntos e pela festa de amanhã, com a minha mulher a
    distribuir a carne, já livre das pedras e da magreza e das dores, surgindo do biombo do
    médico não frágil, não doente, com a idade em que a conheci, caminhando ao meu lado
    na direção de casa tímida, embaraçada, contente, sem nenhuma guerra a separar-nos,
    sem as mercedes trilhos fora sob as árvores do rebenta minas, na segunda viatura, a do
    rádio e da metralhadora, o cabo e o municiador lá em cima, numa espécie de torrezita,
    e a bazuca a espreitar para um lado e para o outro, ainda sem o meu filho, sozinho, a
    pensar faltam catorze meses, faltam treze, daqui a nada, é um instante, volto e voltei,
    sem uma ferida, sem um estilhaço, inteirinho, e a minha mulher no cais no meio das
    pessoas à espera, talvez um bocadinho mais magra, um bocadinho mais velha, com um
    vestido que eu não conhecia e os cabelo curto, uma espécie de franja que quase lhe

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