António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

se de nós, o homem de bruços, com o tiro na cabeça e a ferida nas costas, recomeçou a
andar, uma ocasião ou duas



  • Muana
    e eu calado sempre, começava a reconhecer algumas porções de mata, alguns trilhos
    e uma fieira de mangueiras antigas, sinais de pacaças que se roçavam em troncos, um
    cheiro ainda distante que começava a assemelhar-se ao cheiro do quimbo, o sol não
    redondo, torto, líquido, a minha mãe atravessou o quintal sempre amparada ao muro,
    perguntei-lhe

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    e nem olhou para mim, arrastando uma das pernas num vagar comprido que deixava
    um sulco na terra, as costas tão magras, o pescoço curvado, o médico

  • Sinceramente não noto pioras uma certa palidez e é tudo estes medicamentos
    novos por serem mais seguros são lentos temos que lhes dar algum tempo
    e os olhos de Sua Excelência a censurarem-me fixos, o que mudou em ti, o que mudou
    na minha pessoa, o que mudou em nós dois, a minha mãe baixinho, que comédia tudo
    isto

  • Talvez sinta menos as pedras
    a flutuarem na ideia dela, ora aqui ora ali, tão simples, tão claras, o corpo fraco mas
    as pedras sem doerem, livres, quer dizer flutuando à superfície da dor, não no fundo,
    era apenas o corpo que lhe custava, não elas, as pedras à sua roda sem lhe fazerem
    dano, a porta da adega aberta embora o bicho ainda não tivesse chegado, daqui a nada
    começamos a escutar a carroça com ele, os eixos das rodas, as tábuas, tudo aquilo a
    descer a ladeira que passava pela capela, Sua Excelência a olhar-me, de boca a mover-
    se numa única palavra que apesar do silêncio não se calava em mim

  • Tu
    sem que o meu pai, que se aproximava de nós, a escutasse, se o meu avô ali estivesse
    agradado, de caçadeira a servir-lhe de bengala e a cadela a enrolar-se-lhe nos
    calcanhares, África tão longe, a guerra acabada, o napalm esquecido, os torresmos dos
    quimbos dissolvidos na chuva, os animais degolados que a terra comeu, o claustrozito
    da missão um ou outro arco apenas e parte de um balde de plástico no rebordo do poço,
    celas sem porta, limoeiros defuntos, eu aos ombros do homem que caminhava sempre,
    um grupo de mandris numa encosta com um macho a perseguir outro macho e uma
    fêmea, que confundi com Sua Excelência, guinchando, grunhindo, o primeiro vento da
    chuva, os primeiros relâmpagos mas ainda distantes, pequenos, uma cabra tentou fugir
    até amolecer de banda e o macho que a perseguia afastou os restantes exibindo os
    caninos compridos, o meu pai trouxe uma senhorinha para a minha mãe e colocou-a
    logo à entrada da adega na qual ela se amontoou como um vestido vazio, os sapatos
    lado a lado, sem corpo por cima, como quando a gente se deita e eles ficam ali, solitários,
    vazios, iguais à cara da minha irmã sem feição nenhuma, as poucas que sobravam
    desprovidas de relevo, desenhadas na pele, as pessoas na adega à espera caladas, a
    prima que se ocupava do jazigo, a filha da prima, um sujeito que eu não conhecia com
    uma muleta ao lado, o meu pai amável

  • Ainda vivo este rapaz

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