António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)
e o médico
- Vai correr tudo bem
não nessa altura, agora, e claro que não vai correr bem, as pernas cada vez mais
fracas, uma dificuldade no peito como se a respiração tropeçasse não sei onde e ficasse
a pedir aos pulmões, sentada num degrau, a massajar os joelhos
- Venham vocês ter comigo
e ninguém vinha ter com ninguém dentro de mim, coisas que boiavam, chocalhavam,
se evitavam umas às outras, episódios, pedras, dores, memórias muito antigas, o meu
pai para a minha mãe
- Não tornes a pintar o cabelo de loiro que isto é uma coisa séria
e o meu marido, de uniforme, sinto nos vossos semblantes, mais indefeso ainda, a
acompanhar-me ao emprego, a acompanhar-me a casa, se por acaso o seu cotovelo
roçava no meu afastava-o num saltito
- Desculpe
uma tarde, por causa de um gesto que explicava não sei quê, o mindinho dele
prendeu-se-me nos dedos e ficou por ali, envergonhado, inerte, à segunda ou terceira
tarde juntou-se-lhe o anelar, depois o médio e hesitei entre apertar-lhos um bocadinho
ou encolher a mão devagar, ao encolher a mão acariciei-os sem querer, ele apanhou-
me em resposta e já não pude tirá-los de maneira que fomos ficando assim, indecisos, a
suar que vergonha, a sentir-me corar, não era agradável nem desagradável, era
estranho, ou seja tenho de confessar que agradável e ao mesmo tempo estranho, foi-se
tornando aos poucos cada vez menos estranho, passados dias poisou-me a palma no
pescoço, passados dias rodeou-me as omoplatas com o braço, passados dias contei à
minha mãe, passados dias, ao entrar na sala, estavam os meus pais a conversar no sofá,
com o meu pai a perguntar à minha mãe
- Palavra de honra?
e calaram-se ao encontrarem-me, durante o jantar observaram-me o tempo inteiro
à socapa, soslaiozinhos rápidos, sinalefas cuidando que eu não via, enquanto me
abismava no quadro de maçãs e peras na parede, nunca olhei tanto para ele na vida,
seis peras e quatro maçãs, uma delas com uma folhita no pé, temo-lo no corredor agora
e quase não reparo nele mas se calha reparar vem-me logo essa noite à ideia, imito para
elas, só me apercebendo depois, uma das sinalefas dos meus pais e o quadro, em geral
distraído de mim, logo atento, a opinar
- Porque não?
consoante tenho a certeza que a minha mãe, a argumentar baixinho, enquanto
levava os pratos para a cozinha julgando que eu não ouvia
- Sinto nos vossos semblantes
que patetice
- Sinto nos vossos semblantes
na partida do meu pai para a guerra, a minha mãe
- Porque não?
e a resposta do meu pai foi servir-se de mais um pingo de vinho, ele que quase não
tocava em vinho, a manchar a toalha que por acaso estava ali de lavado de modo que
nos jantares seguintes, sem que os meus pais se apercebessem, um diálogo constante,