REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
raras vêzes é como um sinal, ou mancha breve, de que
o alinho se adorna por arte, e por estudo; antes essa
imperfeição se estende, e cresce tanto, que abraça o
objeto inteiro, e o escurece: qualquer mistura em pouca
quantidade contamina a pureza de um licor; uma
grande porção o absorve, e compreende todo. Êsse
caudaloso Tejo não o turva um só regato imundo,
porém muitas torrentes de água impura, fazem-lhe
perder o nome, e semelhança de cristal: uma só nuvem
não faz sombria a claridade do horizonte, mas muitas
nuvens juntas fazem de um belo dia, uma noite escura:
assim a beleza; o vício nela não costuma ser como um
regato, mas como torrente; o que tem de imperfeito,
não é como um sinal (efeito enfim da meditação) mas
como uma mancha verdadeira; o seu defeito raramente
é leve; antes quase sempre pesa mais do que a mesma
formosura. Infeliz concórdia, cruel sociedade! Quem
dissera que um mesmo objeto seja capaz de inspirar
amor, e aborrecimento! Tão pouca distância há entre o
mal, e o bem? Entre a aversão, e o afeto, entre o
perfeito, e o defeituoso, que em um mesmo sujeito se
possam encontrar, e unir?
A vaidade da formosura é a mais natural de (111) tôdas
as vaidades, é vaidade inocente; a natureza em nada se recreia
tanto, como em contemplar-se a si na sua obra, e em rever-se
na sua mesma perfei-ção ; por isso a formosura é um encanto,
a que não resiste, nem ainda quem o tem; ela a si mesma se
namora, a si se busca, ama-se a si, e de si se rende; é como um
efeito, quem vem a retorquir-se contra a sua causa, ou contra
o seu princípio; e como um movimento, que retrocede, e se
dirige contra o seu