AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31
lhe fazer as mesmas perguntas, exa-
tamente nos mesmos termos. Os
dois locutores compartilham o mes-
mo vocabulário: “seu pai”, “nascer”,
“fazer” etc. A língua, conforme ob-
servamos, é um bem comum acessí-
vel a qualquer locutor de maneira
simétrica e equilibrada. Porém, em
japonês, as coisas não ocorrem do
mesmo modo. A (o sujeito falante
inferior) e B (o sujeito falante supe-
rior) não têm acesso às mesmas pa-
lavras e, caso utilizem os mesmos
vocábulos, A deve modificá-los,
acrescentando-lhes partículas lin-
guísticas de deferência (para o pai
de B) ou de rebaixamento (para seu
próprio pai).
Podemos também usar o exemplo
de uma conversa que coloca dois ir-
mãos frente a frente. Como se desig-
nam reciprocamente? Em português,
dispõem simplesmente do pronome
pessoal de tratamento “você” (ou
“tu”). A diferença de idade não de-
sempenha nenhum papel para deter-
minar a fala nem de um nem de ou-
tro. Em japonês, pelo contrário, ela
diferencia de modo singular as pala-
vras empregadas. Em relação ao mais
novo, o filho mais velho, que ocupa
uma posição superior, pode se valer
do emprego da palavra omaé (“você”)
ou do nome de seu irmãozinho. Não
ocorre o mesmo para este último,
que, para se dirigir a seu irmão mais
velho, se vê na obrigação de usar a ex-
pressão “irmão mais velho”. Nem o
nome, nem omaé, nem nenhum dos
outros pronomes pessoais de trata-
mento são possíveis. Aqui também a
falta de simetria é notável.
Um terceiro e último exemplo ser-
ve para elucidar a língua japonesa co-
mo instrumento de atualização das
relações hierárquicas da sociedade,
por meio de sua “disfunção” por causa
de uma utilização errônea do prono-
me pessoal de tratamento da segunda
(ou terceira) pessoa anata feita por
um jovem de 20 anos portador de uma
deficiência mental. Trata-se do perso-
nagem Takashi, de meu livro Em
águas profundas, que trabalha em
uma empresa importante. Levando-
-se em conta sua condição (sua idade
mental é de 10 anos), sua tarefa con-
siste em carregar todas as correspon-
dências e distribuí-las. Por isso, ele co-
nhece todo mundo, desde o presidente
aos simples estagiários. Seu erro de
linguagem reside na utilização uni-
versal do pronome pessoal anata, ao
passo que a língua o obriga a bani-lo
perante seres ocupantes de posições
superiores. Por um ato de transgres-
são do qual ele não é consciente e pelo
qual ninguém se ofende em razão de
seu quadro intelectual, Takashi revela
o enraizamento da hierarquia na lín-
gua. Sabemos que Roland Barthes
qualifica a língua como “fascista”. “O
fascismo”, diz ele, “não é impedir de
dizer, é obrigar a dizer.”^5 Foi preciso,
portanto, a despreocupação de um
“adulto-criança” para enfrentar o
“fascismo” da língua japonesa.
Estar diante de um “você”: nisso
consiste a experiência de existência
fundamental dos locutores japone-
ses, identificar se o interlocutor é su-
perior ou inferior hierarquicamente
falando. Por conseguinte, tudo acon-
tece como se, em qualquer lógica, a
sociedade civil, esse espaço homogê-
neo onde “se associam” os seres fa-
lantes (supostamente) livres e iguais,
não pudesse existir.
Podemos citar sobre esse ponto as
“Cinco vias éticas” (Gorin) da moral
confuciana, que marcaram bastante
a consciência japonesa: o elo de afeto
que une o pai e seus filhos; o senti-
mento de dever que une os vassalos
ao príncipe; os papéis distintos que
associam o homem e a mulher no ca-
sal; a ordem hierárquica que, na ir-
mandade, submete os irmãos mais
novos aos mais velhos; e a relação de
confiança que deve reinar entre ami-
gos. As relações mencionadas são to-
das de natureza vertical – salvo talvez
a da amizade, que pressupõe igual-
dade entre as partes interessadas,
mas não é seguro que, na moral con-
fuciana, esta última escape da estru-
tura hierárquica das relações huma-
nas. De qualquer modo, ela só
aparece em quinto e último lugar na
lista de relações ideais, moralmente
valorizadas. Desse modo, a presença
de desconhecidos estaria fora da
perspectiva nessa visão restrita e
normativa da sociabilidade.
Entretanto, não é justamente com
os desconhecidos, esses seres simila-
res que se ignoram com reciprocida-
de, que deveríamos formar um cole-
tivo político que chamamos de
sociedade civil? Nessas condições, a
combinação binária torna difícil,
quase impossível, a experiência da
“comunidade”, em que os semelhan-
tes, longe de estarem presos em uma
cadeia de dominações e submissões,
unem-se de modo transversal, tendo
em vista a criação de um espaço de
troca igualitária de palavras e
pensamentos.
Ignoramos o pensamento da pra-
ça pública, onde o povo se une e deli-
bera. Em Ensaio sobre a origem das
línguas, Jean-Jacques Rousseau afir-
ma que “toda língua por meio da
qual não se pode ser entendido pelo
povo unido é uma língua servil”. Se
esse filósofo, cidadão de Genebra,
depois de ressuscitar, viajasse ao
País do Sol Nascente, diria certa-
mente que seus habitantes, moven-
do-se em uma sequência acrobática
e ininterrupta de submissões e do-
minações, não são livres e falam
uma “língua servil”, tal qual sua ma-
neira específica de ser coletivo.
UM TRABALHO DE SÍSIFO
Por que a democracia, considerada
não como forma de governo (ou de
exercício do poder), mas sobretudo
como forma de sociedade, não pega
com facilidade no arquipélago nipô-
nico e, de maneira mais geral, fora do
ar cultural europeu, ficando, aliás,
muito restrita ao local onde nasceu
de si própria e de modo espontâneo?
A questão da língua desempenha cer-
tamente um papel preponderante
que ignoramos ou subestimamos há
muito tempo. Pois, segundo a lição de
Rousseau, a língua se molda em fun-
ção das necessidades da sociedade. O
autor do Ensaio concordaria em de-
clarar também que a língua moldada
serve por sua vez para manter ou pa-
ralisar a sociedade em uma estrutura
que demandou sua formação e que
tanto uma como a outra estão em
uma relação de determinação ou de
dependência recíprocas.
Em um país como o Japão, a von-
tade de transformar a sociedade po-
de eximir-se de uma ref lexão apro-
fundada sobre a natureza da língua
por meio da qual o real se constrói e
as trocas se realizam em todos os
meios sociais, desde o corredor da es-
cola até o Parlamento, passando pe-
los escritórios das empresas? É claro
que não. Se a “língua servil” mudas-
se, a sociedade de submissão se aba-
laria. Mas sacudir a língua como fez
Takashi, querer agir sobre seus usos
sociais, fazer as práticas linguísticas
mudarem é um trabalho de Sísifo, in-
dividual e/ou coletivo, cujos efeitos
apenas a história pode medir...
No contexto da crise sanitária
mundial da Covid-19 e da baixa quan-
tidade de casos contabilizados no Ja-
pão, pode-se perguntar – além do hábi-
to bem sedimentado do uso de máscara
e da liturgia social e cultural específica
(sem aperto de mão, nem beijos, nem
abraços e distanciamento proxêmico)
- se a produção de palavras vivas (por-
tanto, de gotículas), dependendo, en-
tre outros, da cultura do debate, não
teria sua importância. Se, por acaso,
esse fator inesperado se mostrasse per-
tinente, seríamos obrigados a consta-
tar, com tristeza, que a “língua servil” é
a melhor arma diante da epidemia...
*Akira Mizubayashi, romancista em fran-
cês e em japonês, é autor principalmente
de Dans les eaux profondes. Le bain japo-
nais [Em águas profundas. o banho japo-
nês], Arlea, Paris, 2018, e Âmes brisées
[Almas partidas], Gallimard, Paris, 2019.
1 Cf. Cécile Marin, “Empires en accordéon” [Im-
périos instáveis], Manière de Voir, n.139, fev.-
-mar. 2015.
2 Cf. Dans les eaux profondes. Le bain japonais
[Em águas profundas. O banho japonês], Ar-
lea, Paris, 2018.
3 Ler Philippe Pataud Célérier, À Fukushima,
une catastrophe banalisée [Em Fukushima,
uma catástrofe banalizada], Le Monde Diplo-
matique, abr. 2018.
4 Ver a conferência Vivre en exilé linguistique –
Aller au-delà des limites de son monde [Viver
em exílio linguístico – Ir além dos limites de
seu mundo], de 25 de setembro de 2018, no
âmbito dos Encontros Internacionais de Ge-
nebra, disponíveis para consulta em: http://www.
mizubayashi.net.
5 Roland Barthes, Leçon [Lição], Seuil, Paris,
1978.
Creio perceber a origem
da apatia política dos
japoneses nessa
concepção naturalista
da sociedade
© Ryoji Iwata/Unsplash