Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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32 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


O mundo ideal dos hobbits


Com 150 milhões de exemplares vendidos, O Senhor dos Anéis é uma obra que, após
algumas décadas, em vez de sair de moda, ganha importância. Ela parece ter encontrado,
até nutrido, um imaginário coletivo cada vez mais comum. Seu sistema de valores
implanta uma moral política repleta de ambiguidades

POR EVELYNE PIEILLER*

P


rovavelmente ninguém é obri-
gado a acreditar que John Ro-
nald Reuel Tolkien (1892-1973)
seja o autor da “obra mais rica e
complexa do século X X”,^1 mas a ver-
dade é que a trilogia Senhor dos Anéis
vendeu 150 milhões de exemplares,
com a ajuda das adaptações de Peter
Jackson para o cinema: US$ 3 bilhões
pela projeção em salas e 17 Oscars, is-
so enquanto se espera a série da Ama-
zon, que pagou tranquilamente US$
250 milhões pelos direitos. Ao que tu-
do indica, Tolkien é um dos astros de
nossa época, e sabemos bem que na-
da é mais brilhante no imaginário de
uma época que o imaginário artísti-
co que ele inaugura.
J. R. R. Tolkien parece, no entanto,
dependente de um clichê fora de mo-
da. Conheceu as duas guerras mun-
diais, mas quase toda a sua vida foi
dedicada ao estudo e à escrita. Pro-
fessor em Oxford, especialista em fi-
lologia e literatura inglesa arcaica,
sabia gótico (língua morta falada ou-
trora pelos godos), nórdico antigo
(língua escandinava medieval) e fin-
landês. Além disso, era um apaixona-
do pelas epopeias nórdicas, o Edda, o
Kalevala... Em suma, um erudito que
estreou na literatura infantil com O
hobbit (1937) e depois, durante cerca
de duas décadas, elaborou sua trilo-
gia (1954-1956). Nada de espantoso,
portanto. Afinal, Charles Lutwidge
Dodgson, mais conhecido pelo nome
de Lewis Carroll, também foi profes-
sor em Oxford (de matemática) e se
consagrou, da mesma forma, com
histórias infantis. Uma curiosidade a
propósito de Tolkien: ele era católico,
religião minoritária no Reino Unido,
e católico fervoroso.
A universidade e os fiéis foram du-
radouramente marcados pelo que se
chamou de o “Movimento de Oxford”
em torno de John Henry Newman
(1801-1890), um eclesiástico anglica-
no que, de forma retumbante, se con-
verteu ao catolicismo. Suas ref lexões
sobre a entrega pessoal, o papel da
intuição direta na fé etc. alimenta-
ram os questionamentos de muitos
cristãos, sobretudo britânicos. Ne-
wman foi ordenado cardeal pelo pa-
pa Leão XIII, cuja encíclica Rerum

No entanto, com seu poder inven-
tivo, jovial, que permite evitar alego-
rias diretas, Tolkien revela ao mesmo
tempo aquilo que parece seu mundo
racionalmente ideal, o do povo que
empreende a busca, os hobbits – “ho-
menzinhos” ou semi-homens –, uma
variedade humana modesta, alegre,
que não tem por assim dizer nenhum
governo, respeita espontaneamente
as regras antigas, imutáveis, e, exceto
nas fronteiras, não precisa das forças
da ordem. Personagens que serão
mais ou menos copiados depois pela
“fantasia”. Esse mundo, acentuada-
mente medievalizante, aceita a ma-
gia, mas ignora a ideia de progresso,
tecnologia, senso histórico. Longe das
“forjas sombrias” que caracterizam o
império do Mal, artesãos e campone-
ses vivem felizes, amantes da boa me-
sa e das belas histórias, indiferentes
ao que precisa ser “sempre contado,
medido”. De resto, o verdadeiro herói
do relato é um jardineiro...
Esse modelo de sociedade auto-
protegida, comedida, enraizada em
sua memória e sua pátria, feudal mas
sem feudos, zelosa apenas dos pe-
quenos prazeres da vida, atenta a tu-
do que é verde e dá frutos, foi bem-re-
cebido pelos contestadores dos anos
1960 e, no campo oposto, pelo Movi-
mento Social Italiano (MSI) neofas-
cista, que organizou entre 1977 e 1981
os “acampamentos hobbits”. A trilo-
gia é hoje muito cara a numerosos lei-
tores de sensibilidade ecológica. Essa
aspiração a um universo rural retró-
grado, autárquico, desconfiado da
técnica e da perda de contato com as
verdades da natureza provavelmente
não vai se extinguir tão cedo, depois
da crise sanitária atual. Seria bom
lembrar que a Sociedade do Anel, em
sua luta contra as potências da morte,
restabeleceu um rei.

*Evelyne Pieiller é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.

1 Lloyd Chery, “Ce que les fans du ‘Seigneur
des Anneaux’ doivent à Christopher Tolkien”
[O que os fãs do Senhor dos Anéis devem a
Christopher Tolkien], Le Point, Paris, 17 jan.


  1. Disponível em: http://www.lepoint.fr.
    2 Ver Marion Leclair, “William Morris, esthète
    révolutionnaire” [William Morris, esteta revolu-
    cionário], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.


Novarum (1891), retomada por Pio XI
(1922-1939), definiu a posição da
Igreja Católica em relação ao traba-
lho: apoio ao sindicalismo, mas opo-
sição ao socialismo, e proposta da cé-
lula familiar como modelo de
organização da sociedade. Essa con-
cepção engendrou uma teoria econô-
mica, o “distributismo”, favorável à
propriedade privada atribuída a gru-
pos em vez de indivíduos e, relativa-
mente à terra e às ferramentas, de-
fensor do retorno às corporações de
ofício. Propunha a extinção dos ban-
cos (exceto os mutualistas) e uma so-
ciedade de camponeses e artesãos
tendo a família como unidade social
básica – sem extremismos políticos.
Tolkien teria sido sensível às ideias
desse movimento, alimentando a
convicção de que o espírito é mais
forte que a matéria e cultivando um
antiestatismo inabalável. Entretanto,
foi igualmente inf luenciado pelo uni-
verso do grandioso William Morris
(1834-1896),^2 pintor e romancista ins-
pirado por uma Idade Média ideali-
zada, tradutor de sagas islandesas e
defensor ativo do retorno a um arte-
sanato que oferecesse beleza a todos.
Morris, fundador da Liga Socialista
juntamente com Eleanor Marx, pre-
cursor da renovação das artes aplica-
das, foi também autor de um dos pri-
meiros romances de “fantasia”, A
fonte no fim do mundo.
Ref lexões teológicas e sensibilida-
de aos mitos, a uma Idade Média len-
dária, eis o que uniu um grupo de
amigos, os Inklings, que de 1930 a
1940 passaram a se encontrar num
bar de Oxford para ler seus escritos e
discuti-los. Entre eles, J. R. R. Tolkien,
Clive Staples Lewis e Charles Wil-
liams. Professor em Oxford, C. S. Le-
wis era anglicano e a parte de sua
obra que faz a apologia cristã conti-
nua em moda no Reino Unido. Mas
ele é famoso principalmente por suas
Crônicas de Nárnia (1949-1954), liv ros
infantis que mostram animais, ma-
gia etc., em uma grande luta do Bem
contra o Mal. Membro por pouco
tempo dos rosa-cruzes e também an-
glicano, Charles Williams fundou
uma espécie de seita cristã, Os Com-
panheiros da Coinerência. Escreveu,

sobretudo, um romance fantástico, A
guerra do Graal, transbordante de
luz, pondo em cena iniciados bran-
cos contra magos negros... Os
Inklings eram, assim, um bando de
crentes, sábios e apaixonados que se
apegavam ao registro do “maravilho-
so”, propício a despertar a sensibili-
dade aos mistérios e à graça – além de
transmitir uma mensagem cristã
num mundo descristianizado.
Esses desafios, essas convicções e
esses debates é que animam O Se-
nhor dos Anéis. Não conseguiríamos
reduzir a trilogia a uma ilustração
qualquer de teses. Mas ela exibe uma
estética e um conjunto de valores que
oferecem uma visão de mundo políti-
ca e espiritual. Relembremos por alto
a história: o Senhor das Trevas forjou
o Anel, instrumento de poder absolu-
to com o qual reduzirá todos à escra-
vidão, mas não o possui mais. Um
hobbit, depositário do Anel, tem por
missão destruí-lo, atirando-o no lu-
gar onde foi feito. Acompanhado por
vários aliados, a Sociedade do Anel,
ele procura alcançar seu objetivo em
meio a perigos inumeráveis, o menor
dos quais não é a atração do Anel. O
objetivo acaba sendo alcançado e,
entrementes, um rei sedutor recupe-
ra seu trono...

Guerra contra o espírito do Mal e
relato de uma busca espiritual, tor-
mentos da consciência e homenagem
à obstinação da força do amor, que
pode superar o interesse egoísta dos
mortais (revivendo também a Natu-
reza implacável), “O Senhor dos Anéis
é, bem entendido, uma obra funda-
mentalmente religiosa e católica”, co-
mo escreveu Tolkien a um amigo je-
suíta. “A princípio, de maneira
inconsciente; depois de uma revisão,
consciente.”

AS INFLUÊNCIAS DE J. R. R. TOLKIEN


A trilogia exibe uma
estética e um conjunto
de valores que oferecem
uma visão de mundo
política e espiritual
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