OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37
A geopolítica de acordo
com James Bond
de se aproxima dele: a crise dos mís-
seis se dá em Cuba entre Nikita Kru-
chev e John Fitzgerald Kennedy. Com
uma pequena variação, a ficção dá o
principal papel à diplomacia britâni-
ca e contrabalança, na tela, o declínio
de Londres no cenário internacional.
De fato, o cenário em que opera
Bond é um universo em que a Grã-
-Bretanha tenta conservar seu pres-
tígio, apesar de sua perda de poder e
até mesmo do fim de seu império, e
de ter sido relegada ao plano secun-
dário pelos Estados Unidos, do qual
se torna auxiliar. Bond realça a ima-
gem da política da Grã-Bretanha
diante de um mundo que se transfor-
ma: em 1962, ano do primeiro filme,
a conferência das Bahamas e os acor-
dos de Nassau selam a “atlantização”
e a filiação da Grã-Bretanha aos Es-
tados Unidos. Novo duro golpe, sete
anos depois da demissão de Winston
Churchill: a dissolução da jovem Fe-
deração das Índias Ocidentais, que
reunia a maior parte das colônias
nas Antilhas, a Jamaica, as Ilhas
Cayman e Trindade e Tobago. Nos
filmes, o engajamento de Bond a ser-
viço da Inglaterra durante a Guerra
Fria e tendo como pano de fundo a
independência de suas colônias é
uma resposta à dúvida que domina-
va o coração dos britânicos, próxima
do julgamento do ex-secretário de
Estado norte-americano Dean Ache-
son: “A Grã-Bretanha perdeu um im-
pério e ainda não encontrou um pa-
pel”. Bond, um homem distinto e
irônico, consolou o Reino Unido por
ter perdido sua inf luência...
Se em 60 anos e 25 filmes ele re-
presenta o modelo fantasioso do su-
cesso das normas ocidentais de 1960
a 2020, ele continua a evoluir assim.
Certamente, permanece um emble-
ma “britânico”, o que mostra essen-
cialmente seu chapéu, que ele usa
desde o início, desde sua entrada na
Universal Exports Ldt., empresa co-
mercial que serve de cobertura para
o MI6. Mas ele acompanha o espírito
da época. Desde 1967, entre a Guerra
do Vietnã e o movimento hippie, ele
muda muito pouco. Sua identidade
se abre ao que vai se chamar mais
tarde de alteridade em Com 007 só se
vive duas vezes, cujo roteiro foi escri-
to por Roald Dahl, autor em especial
do romance A fantástica fábrica de
chocolate: levado pelo movimento do
mundo e a aceitação da multiplicida-
de de culturas, ele entra em uma
poética de hibridização e autotrans-
formação. Longe do Big Ben e do Tâ-
misa, ele se metamorfoseia em cida-
dão pós-colonial, sensível à cultura
japonesa. Revelando-se titular de
um diploma de línguas orientais da
Universidade de Cambridge, James
Bond parte para Tóquio. Hábil co-
nhecedor das artes asiáticas, ele im-
pressiona o chefe dos serviços secre-
tos japonês, Tigre Tanaka, por seu
conhecimento do saquê quente dai-
ginjo, sua familiaridade com os pro-
vérbios nipônicos, sua naturalidade
no novo ambiente. Sua metamorfose
se dá em três tempos: em um palácio
enfeitado de f lores, sua transforma-
ção é, em primeiro lugar, física. Esti-
rado sobre uma mesa de operação,
antes de vestir um quimono doura-
do, com o corpo, os cabelos e as so-
brancelhas modificados, ele abando-
na seu ser britânico e “torna-se”
japonês. A segunda etapa é atlética e
mental: o herói abandona a sofistica-
ção ocidental dos estratagemas de
alta tecnologia de Q – o responsável
pela seção de pesquisa e desenvolvi-
mento do MI6 – e aprende a manejar
armas tradicionais, sansatukan shu-
reido e shuriken. Enfim, a última eta-
pa é cultural e amorosa. Bond se casa
em um templo seguindo estritamen-
te seus costumes: ele se une a Kissy
Suzuki, após a leitura da prece, o
canto e o ritual de purificação. Vesti-
do com roupas de pescador, ele se
instala com sua esposa na ilhota de
Matsu, no centro de um arquipélago
vulcânico. Em 007 – O espião que me
amava (1977), ele se transforma em
beduíno e se lança em uma silencio-
sa travessia do deserto. Em 007 –
Marcado para a morte (1987), ele an-
da a cavalo, usando um turbante dos
mujahidin, nas montanhas afegãs, e
muda o próprio nome. Usando uma
carteira de identidade falsa, ele se
torna soviético e passa a se chamar
Jerzy Bondov.
Fleming se inspirou na imagem de
espiões famosos, como o elegante
Sidney Reilly, que nasceu na Ucrânia
e foi um eficaz agente anticomunista,
o aviador canadense William Ste-
phenson, o muito chique Wilfred
Dunderdale, amante de belas jovens
e membro da alta sociedade, e ainda
o oficial naval Patrick Dalzel-Job, co-
nhecido por um ato, de grande reper-
cussão, de desobediência humanista
durante a guerra e de quem Fleming
parece ter se tornado próximo. Mas é
possível que seu verdadeiro inspira-
dor não tenha sido inglês, e sim sér-
vio: o enigmático dândi Dusko Po-
pov, que nasceu em 1912 na província
de Voivodina, amante das bebidas e
de cassinos, de hotéis luxuosos e de
carros esporte. O playboy Popov foi
um agente duplo iugoslavo, que usa-
va o codinome Tricycle. Durante a
guerra, ele informou os ingleses so-
bre as manobras dos alemães e inclu-
sive tentou avisar John Edgar Hoover
sobre o ataque iminente a Pearl Har-
bor, mas o chefe do FBI não acredi-
tou. Fleming o encontrou em 1941, no
cassino Estoril, em Portugal, e ficou
extremamente impressionado com
seu sangue-frio ao blefar durante
uma partida de bacará, o que pode
tê-lo levado a fazer de Popov o mode-
lo de seu Bond. Em sua autobiografia,
Popov considera isso um “insulto à
sua inteligência”...
Como salientava Umberto Eco, é
difícil negar que Fleming “professe
um anticomunismo visceral”^1 em
seus romances. No entanto, os fil-
mes são surpreendentes desse ponto
de vista. Na realidade, Bond é levado
a se aproximar mais dos serviços se-
cretos soviéticos que dos norte-ame-
ricanos. Ao longo do tempo, a cum-
plicidade geopolítica entre Londres e
Moscou torna-se clara. Bond prefere
trabalhar com os soviéticos e ir além
do antagonismo clássico da Guerra
Fria: ele se associa à major Anya
Amasova, da KGB, em 007 – O espião
que me amava, à espiã Pola Ivanova,
em 007 – Na mira dos assassinos
(1985) e ao general Gogol, em 007
contra Octopussy (1983). A KGB e o
MI6 são aliados, enquanto o aliado
“natural”, a CIA, foi muitas vezes ri-
dicularizada, com as características
do grosseiro, indiscreto e meio estú-
pido Félix Leiter. A oposição entre
realidade e ficção às vezes é f lagran-
te: em 1984, sob o pretexto de defen-
der os interesses de seu país, Ronald
Reagan def lagrou uma guerra san-
guinária na Nicarágua contra o go-
verno socialista sandinista. No mes-
mo período, nas telas, em 007 – Na
mira dos assassinos, James Bond era
condecorado com a ordem de Lenin
pelas mãos do general Gogol, o chefe
da KGB. Essa nova amizade anglo-
-soviética permitiu lutar contra o
inimigo de todos os povos, a organi-
zação criminosa internacional Spec-
tre. Ao deixar de lado as disputas es-
tratégicas de seu campo para se aliar
com o inimigo do mundo livre a fim
de enfrentar um perigo global e co-
mum, Bond fixa a eficácia de seu soft
power: a grandeza britânica sabe ir
além da defesa de seus próprios inte-
resses para se erguer em defesa da
humanidade...
*Aliocha Wald Lasowski é autor de Les
Cinq Secrets de James Bond [Os cinco se-
gredos de James Bond], Max Milo, Paris,
2020.
1 Umberto Eco, “James Bond, une combinatoire
narrative”, Communications, n.8, Paris, 1966.
http://www.editoraunesp.com.br
COLEÇÃO
CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP
Cinco volumes chegam para integrar sua biblioteca com os
principais cânones da literatura nacional e universal, para seu
deleite e passeio pelos grandes textos que marcaram a humanidade.
Confira também os títulos já publicados: Quincas Borba, de
Machado de Assis; Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe;
A relíquia, de Eça de Queirós; Contos, de Guy de Maupassant;
Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
Macunaíma
Mário de Andrade
Eugénie Grandet
Honoré de Balzac
Urupês
Monteiro Lobato
Oliver Twist
Charles Dickens
O falecido
Mattia Pascal
Luigi Pirandello
.