Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9


dores, motoboys, operários, peque-
nos comerciantes, ambulantes, fei-
rantes e ainda um sem-fim de
ocupações precarizadas. Há tam-
bém uma grande parcela desempre-
gada ou aposentada.
Historicamente, periferias e fa-
velas são os territórios onde se apre-
sentam de maneira mais violenta as
distintas opressões que embasam a
estrutura social brasileira: patriar-
cal, na qual as mulheres pobres e
negras são os maiores alvos; escra-
vocrata, expressa no racismo estru-
tural e nas relações de trabalho e
acumulação que fundamentam o al-
to grau de exploração do capitalis-
mo brasileiro; e latifundiária, uma
vez que periferia também se cir-
cunscreve no debate de propriedade
ou não da terra. Como já exposto, a
esses elementos estruturais agre-
gam-se alguns elementos conjuntu-
rais: a pandemia, o desmonte da so-
ciedade salarial e a destruição das
políticas públicas. Agindo a partir
das periferias, como seria possível
reverter esse cenário?


AS PERIFERIAS DE SÃO PAULO
ENQUANTO EXPRESSÃO DIALÉTICA
DO CAOS E DA POTÊNCIA
Entre diversidades e semelhanças, o
partilhar do território pode ser o pon-
to de unidade de uma população de
determinada quebrada. Quebradas
unidas, respeitando suas particulari-
dades e enfatizando suas dores e delí-
cias em comum, podem se transfor-
mar em uma força capaz de incidir
no atual cenário político brasileiro.
No entanto, como pensar essa or-
ganização a partir do território? Em
princípio, um bom exercício de ima-
ginação nos conduziria a pensar para
além de algumas dicotomias, ou pos-
sibilitar sínteses entre elas. A primei-
ra dicotomia é aquela que opõe a tra-
dição leninista e sua ênfase na
tomada do poder do Estado e a tradi-
ção autonomista, baseada funda-
mentalmente na auto-organização
no território. Estantes de bibliogra-
fias se debruçaram sobre esses dile-
mas e não temos aqui condições de
reproduzi-los no todo. Há alguns
anos, esse debate voltou a ganhar
centralidade nos movimentos sociais
por meio da antinomia projeto popu-
lar × poder popular. Em pesquisa re-
cente realizada pelo Centro de Estu-
dos Periféricos^3 e pela Fundação Rosa
Luxemburgo, as propostas elencadas
buscaram dar conta das possibilida-
des existentes nos dois polos aparen-
temente opostos: uma sociedade civil
forte e organizada não requer neces-
sariamente um Estado fraco, e vice-
-versa. O que se pretende é um Estado
que funcione com base nos anseios
da população, e não que a oprima. O
discurso do Estado mínimo já tem


seus defensores nas fileiras liberais e,
em um país como o Brasil, onde a
maior parte da população vive na po-
breza, ainda não é possível prescindir
desse agente.
Um dos paradoxos desse dilema,
que nos ajuda a imaginar o futuro,
ocorreu no combate à pandemia: tra-
ta-se da formação de muitas redes de
solidariedade nas periferias e favelas.
Essas redes foram protagonizadas
por times de futebol de várzea, gru-
pos de samba, movimento hip-hop,
igrejas católicas, igrejas evangélicas,
centros de umbanda, centros espíri-
tas, torcidas organizadas, associa-
ções de moradores, estudantes, esco-
las, creches, movimentos de moradia,
movimentos de saúde, movimento
sem-terra, coletivos culturais, co-
merciantes e mais um sem-fim de or-
ganizações. Por meio delas foi possí-
vel distribuir máscaras, insumos,
cestas básicas e informações. Se não
fossem essas redes, o impacto da Co-
vid-19 teria sido muito maior. No en-
tanto, não se pode prescindir da luta
por um posto de saúde que tenha mé-
dicos e remédios, de um hospital que
atenda rápido e de uma escola educa-
dora e criativa. Nessa relação dialéti-
ca, as redes de solidariedade como
representantes da população organi-
zada não têm condições nem recur-
sos para substituir o Estado. Contu-
do, como já apontado, o Estado deve
servir aos anseios e às necessidades
da população.
Nesse âmbito, cabe destacar que a
lógica operada pelos gestores do mu-
nicípio de São Paulo nos últimos anos
tem sido a da dilapidação do patri-
mônio público e a de um acentuado
processo de privatização.^4 Esse pro-
cesso desmontou os sistemas de saú-
de e assistência social no município,
potencializando os danos causados
pela pandemia. Nesse âmbito, uma
das pautas é a necessária reversão
das políticas neoliberais.
Outro tema que historicamente
define as desigualdades territoriais é
o relacionado à segregação socioes-
pacial. A distância obriga milhões de
moradores das periferias a desloca-
mentos diários em transportes públi-
cos precários. Essa diáspora cotidia-
na humilha e incide diretamente nos
anos de vida da população. Não foi
por acaso que um dos principais ve-
tores de disseminação do vírus foi o
transporte público. As duas princi-
pais formas de reversão dessa ques-
tão seriam altos investimentos em
corredores de ônibus e linhas de me-
trô, aumentando quantitativa e qua-
litativamente as opções de desloca-
mento, e a criação de múltiplas
centralidades com postos de traba-
lho nas periferias, evitando os deslo-
camentos para o centro expandido
ou para o quadrante sudoeste.

Outra questão premente na vida
de moradoras e moradores das peri-
ferias é a ausência de árvores, par-
ques e áreas verdes, fato que incide
diretamente na qualidade de vida.
Dada a necessidade de moradias e
equipamentos públicos, os espaços
periféricos foram sendo disputados e
ocupados palmo a palmo. A praça e a
área verde foram deixadas para se-
gundo plano. O bem viver passa pela
possibilidade de ter um parque equi-
pado perto de casa para levar as
crianças para correr e onde jovens e
idosos possam se socializar.

Fazem-se necessárias também
políticas públicas de emprego e ren-
da. O desemprego e os baixos salá-
rios, somados à crise econômica pro-
funda que se acelerou no contexto
pandêmico, devem ser combatidos
com intervenção estatal. Nesse caso,
a mão invisível do mercado só preju-
dica quem já tem menos possibilida-
des. Não se pode esquecer que a fome
voltou e que o custo dos alimentos
tem subido de maneira absurda.
Outro debate urgente a ser avan-
çado no município se refere ao racis-
mo estrutural. Há uma evidente ho-
mologia entre raça, classe e território
no urbano. Quanto mais distante se
localiza o distrito em relação ao qua-
drante sudoeste, mais aumentam os
índices de pobreza e a presença da
população negra. Por mais que algu-
mas dinâmicas se produzam e se re-
produzam por meio de estruturas
históricas e econômicas profundas, o
município pode, por meio de políti-
cas públicas, contribuir para a cons-
trução de uma cidade antirracista.
Uma das primeiras medidas seria
o fortalecimento e a consolidação da
Secretaria da Igualdade Racial na
Prefeitura de São Paulo, sucateada
nas últimas gestões municipais. Ou-
tra ação fundamental é a garantia da
presença de negras e negros em car-
gos públicos. Uma educação antirra-
cista nas escolas também é uma pau-
ta fundamental, ensinando história
africana e cultura afro-brasileira,
promovendo os direitos humanos e a
diversidade.
Cabe lembrar ainda que os apara-
tos repressores do Estado seguem
operando sob a lógica da intervenção
e da ocupação das periferias. No qua-
drante sudoeste, a lógica é a da guar-
da do patrimônio e das pessoas. A po-
pulação moradora das periferias,

fundamentalmente a população ne-
gra, está submetida a diversos geno-
cídios: o genocídio da bala, o genocí-
dio da fome e o genocídio da Covid-19.
Não por acaso, uma série de candida-
turas coletivas negras e de periferias
disputou cargos à vereança nas últi-
mas eleições. Se a presença no Estado
não resolverá tudo, abandonar essa
arena de disputa é conceder mais um
espaço para os setores reacionários
da sociedade.

UMA NOVA CIDADE,
UMA NOVA SOCIEDADE
A sociedade que queremos só existirá
por meio de mudanças estruturais.
Nela não existirá capitalismo, pa-
triarcado, racismo, e cada ser huma-
no poderá desenvolver livremente
suas potencialidades. A organização
da população nos territórios faz parte
desse processo de mudanças. Candi-
daturas coletivas e redes de solidarie-
dade são algumas das experiências
políticas que ora ocorrem nas perife-
rias paulistanas e vislumbram futu-
ros. Ambas têm em seu cerne o forta-
lecimento dos laços de solidariedade
e de afeto e as relações de vizinhan-
ça. Essas sujeitas e sujeitos periféricos
nos apresentam pistas de caminhos a
serem trilhados: comunas, quilom-
bos, quebradas, noção do público,
produção do comum em comum.
Pensar a cidade que queremos é pen-
sar a sociedade que queremos. Mais
do que pensar, temos de nos dar o di-
reito de imaginar e de sonhar o mun-
do que gostaríamos de habitar. No
entanto, para a realização de nossos
sonhos, serão necessárias muitas lu-
tas e mobilizações.

*Tiaraju Pablo D’Andrea é músico, mora-
dor da Zona Leste de São Paulo, professor
da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e coordenador do Centro de Es-
tudos Periféricos (CEP).

1 Para uma análise mais aprofundada das peri-
ferias no contexto da pandemia, sugiro a leitu-
ra do livro 40 ideias de periferia, disponível
em: http://www.dandaraeditora.com.br.
2 Para uma melhor compreensão da proposta
de definição territorial de periferia defendida e
utilizada neste texto, sugere-se a leitura deste
artigo de Tiaraju D’Andrea: “Contribuições
para a definição dos conceitos periferia e su-
jeitas e sujeitos periféricos”, Revista Novos
Estudos Cebrap, ed.116, v.39, jan.-abr. 2020.
3 A pesquisa “Agenda Propositiva das Periferias”
foi composta por uma equipe de 31 pessoas,
entre pesquisadores, professores e estudan-
tes, todes moradores das periferias. Para a
pesquisa foram entrevistados ao redor de tre-
zentos moradores das periferias, resultando
em uma agenda com mais de cinquenta pro-
postas para dez eixos temáticos distintos. Os
resultados parciais da pesquisa estão no site
do Le Monde Diplomatique Brasil:diplomati-
que.org.br/agenda-propositiva-das-periferias/.
4 Sobre a política de privatizações operada por
João Doria e Bruno Covas à frente da prefeitu-
ra, ver o artigo de Patrícia Laczynski e Gusta-
vo Prieto, “São Paulo à venda: ultraneolibera-
lismo urbano, privatização e acumulação de
capital (2017-2020)”, GEOUSP Espaço e
Tempo (Online), v.24, n.2, p.243-261, 2020.

Quebradas unidas
podem se transformar
em uma força capaz de
incidir no atual cenário
político brasileiro

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