DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15
Para se fazerem conhecer, as re-
des de mulheres líderes contam com
poderosos contatos na mídia, que
compartilham de sua sensibilidade
política. Em troca, as grandes empre-
sas que as apoiam, parceiras e às ve-
zes anunciantes desses meios de co-
municação, compram uma vitrine
feminista. Assim, o “Davos das Mu-
lheres” utilizou as redes de mídia da
comunicadora Anne Méaux (ler boxe)
e as da agência Publicis.^6 Todo ano,
ele conta com uma elogiosa cobertu-
ra de veículos como Le Figaro, Elle,
Challenges, Les Échos e L a Tr i b u n e,
que são seus parceiros. Essa proximi-
dade pode dar origem a uma censura
mais ou menos sutil. Um jornalista
que trabalhou em um desses veículos
conta sobre uma conversa telefônica
entre um freelancer e um editor da
redação: “Publicar um perfil de Anne
Méaux seria arriscado”, dizia este.
“Ela é muito poderosa. Conhece to-
dos os nossos anunciantes. Eu seria
despedido se a criticasse.”
VITRINE PARA AS
GRANDES EMPRESAS
Nessa mesma redação, uma jovem
jornalista escreveu um artigo sobre a
política social da L’Oréal, após uma
funcionária fazer uma queixa por dis-
criminação em razão de sua gravidez.
Representantes da marca, segunda
maior anunciante do veículo, imedia-
tamente se reuniram com as mais ele-
vadas instâncias da redação para mo-
dificar o artigo, que já estava on-line,
além de publicar seu direito de res-
posta. Depois, a mídia só voltou a falar
da empresa de forma elogiosa. O gru-
po de cosméticos, financiador do WF,
preocupa-se com sua imagem femi-
nista. Ele é parceiro do Conselho Con-
sultivo para a Igualdade entre Mulhe-
res e Homens, instituído em 2019 pelo
G7 (então presidido pela França) com
o apoio de Marlène Schiappa. Essa co-
nivência também é ilustrada por um
apelo da direção da empresa ferroviá-
ria francesa SNCF aos jornalistas da
redação na primavera de 2019. Em
pleno movimento social contra a re-
forma que deveria abrir o transporte
de passageiros à concorrência, ela so-
licitou um artigo exaltando sua políti-
ca de igualdade entre mulheres e ho-
mens. Em contrapartida, passagens
grátis para os jornalistas.
Para essa mídia, a promoção de li-
deranças femininas tornou-se um te-
ma recorrente, bem como uma fonte
de receitas. Há quatro anos, o prêmio
Business with Attitude [Negócios
com Atitude], organizado pela revis-
ta Madame Figaro, premia empresá-
rias líderes de start-ups. Cerca de cem
inscrições são examinadas pela reda-
ção e por um júri, em grande parte
formado por executivos de grandes
empresas – este ano: La Poste, Accor,
mentou. Mas essas redes triunfaram
realmente sob a presidência de Ma-
cron. Vários membros de seu governo
foram convidados para o WF, como a
ex-ministra do Trabalho Muriel Péni-
caud e a atual ministra delegada da
Indústria, Agnès Pannier-Runacher,
além da cofundadora do partido Em
Marcha!, Astrid Panosyan. Em outu-
bro de 2019, Marlène Schiappa e Cé-
dric O., então secretários de Estado,
respectivamente para a Igualdade
entre Mulheres e Homens e para As-
suntos Digitais, confiaram uma mis-
são à diretora-geral do WF, Chiara
Corazza. O relatório apresentado por
ela em fevereiro de 2020, intitulado
“Les femmes au cœur de l’économie:
la France pionnière du leadership au
féminin dans un monde en pleine
transformation” [As mulheres no
centro da economia: França, pioneira
da liderança feminina em um mundo
em transformação], baseia-se larga-
mente no trabalho dos membros do
comitê estratégico do WF: o círculo
“Mulheres e clima” é dirigido pelo
BNP Paribas; “Mulheres e acesso à
saúde”, pela Axa; “Mulheres e inteli-
gência artificial”, pela Microsoft. “É
uma questão de justiça e equidade,
mas também de desempenho econô-
mico: se mulheres e homens forem
representados de maneira igual, 240
milhões de empregos [no mundo]
podem ser criados até 2025, e US$ 28
trilhões adicionados ao PIB”, afirma
o documento, que deveria subsidiar
um projeto de lei sobre emancipação
econômica das mulheres, que está
em suspenso. A maioria das 27 medi-
das defendidas diz respeito ao acesso
à tecnologia e à ciência, ao estabele-
cimento de cotas, ao acesso a patro-
cínios ou à criação de bolsas de exce-
lência. Há apenas duas menções à
igualdade salarial e um ponto reco-
mendando a prorrogação da licença-
-paternidade, medida colocada em
prática nesse meio-tempo, pois a li-
cença deve dobrar – de 14 para 28
dias – a partir de 1º de julho de 2021.
AFINIDADES ELETIVAS
COM O “MACRONISMO”
Essas afinidades eletivas entre as re-
des do patronato feminino e o “ma-
cronismo” ajudaram a marginalizar
os sindicatos de trabalhadores na
questão da igualdade profissional.
Em 2018, o governo solicitou a exper-
tise de Sylvie Leyre, então diretora de
Recursos Humanos da Schneider
Electric. A ministra do Trabalho, Mu-
riel Pénicaud, pediu que ela definisse
as modalidades de um software de
avaliação das desigualdades sala-
riais. Seu relatório deu origem ao Ín-
dice de Igualdade Profissional, que
foi integrado à Lei da Liberdade de
Escolha do seu Futuro Profissional,
de 2018. Para Sophie Pochic, a eficá-
cia dessa ferramenta, apresentada
pelo governo como “decisiva”, deve
ser relativizada: “O índice mostra o
número de mulheres entre os dez
maiores salários corporativos, a ob-
tenção ou não de aumento salarial
após o retorno da licença-maternida-
de, a disparidade de remuneração em
grupos profissionais equivalentes
etc. Na verdade, é uma síntese de in-
dicadores legais que já existiam”.
Além disso, sindicatos e pesquisado-
res criticaram o método de cálculo
das disparidades de remuneração. É
o caso da Confederação Geral do Tra-
balho (CGT), que em março de 2019
destacou, em um comunicado à im-
prensa: “Alguns dos fatores estrutu-
rais das disparidades de remunera-
ção não se enquadram no escopo do
índice: as disparidades de tempo de
trabalho, as disparidades cumulati-
vas de carreira e a desvalorização de
empregos predominantemente femi-
ninos foram, no geral, eliminados”.
A equipe do governo Macron cer-
cou-se da expertise de líderes em-
presariais e de altos executivos do
setor privado para redigir suas leis,
ignorando associações feministas
tradicionais. “Não tivemos nenhum
contato com Marlène Schiappa por
um ano e meio”, lembra Caroline De
Haas, fundadora do coletivo #Nous-
Toutes [#TodasNós]. “Isso só mudou
depois da nossa marcha [contra a
violência sexual e de gênero, em no-
vembro de 2019 (N.T.)], que reuniu
30 mil pessoas”. Marilyn Baldeck,
delegada geral da Association Euro-
péenne contre les Violences Faites
aux Femmes au Travail (AVFT, Asso-
ciação Europeia contra a Violência
contra as Mulheres no Trabalho), la-
menta o desaparecimento dos “ca-
nais de comunicação com o poder
público desde 2017”. Marlène Schia-
ppa assume essa ruptura com “asso-
ciações satélites do Partido Socialis-
ta”, em suas palavras, esclarecendo
que os subsídios da AVFT foram
mantidos: “É uma associação politi-
zada, engajada com partidos de es-
querda. Eu não dou a caneta de meus
projetos de lei a pessoas que são opo-
sitoras do governo”, irrita-se quando
questionada a respeito. Marilyn Bal-
deck defende-se, divertida: “Ao con-
trário do que pensa a ministra, a
AVFT e eu nunca fomos próximas do
Partido Socialista ou de qualquer
outro partido”.
Oddo BHF Banque Privée, Engie,
Google e EY, sem falar do banco pú-
blico Bpifrance, representado por Pa-
trice Bégay. Em troca de seu financia-
mento ou envolvimento, essas
empresas conseguem que falem bem
delas, o que pode ser útil para desviar
a atenção de assuntos incômodos.
Em 2019, em pleno caso Carlos
Ghosn,^7 um representante da Renault
usou um café da manhã da premia-
ção para declarar o apoio inabalável
da montadora e de seu presidente à
causa das mulheres.
Por sua vez, a revista Elle lançou o
fórum Elle Active, que trata do lugar
da mulher no mundo do trabalho.
Durante a edição de 2019, convida-
dos como a presidente do Banco
Central Europeu, Christine Lagarde,
e Jacques de Peretti, CEO da Axa
France, puderam apresentar ao pú-
blico sua visão do feminismo, ao la-
do de redes como Force Femmes, La-
boratoire de l’Égalité, Financi’Elles e
InterElles. Perto dali, um estande da
L’Oréal Paris maquiava as partici-
pantes para destacar a importância
da aparência nas seleções de empre-
go. Presente como observadora na
edição 2019, Sophie Pochic destaca
que “esse tipo de evento, graças ao
patrocínio da marca, permite que
um jornal em dificuldades continue
existindo. Esse aspecto financeiro às
vezes é mais importante do que o
conteúdo das discussões. Como o
evento é gratuito, ele ajuda a popula-
rizar a causa dos empresários”.
FUNCIONÁRIOS CASTIGADOS
Se a feminização das esferas de po-
der vai muito bem, na base da pirâ-
mide as coisas são diferentes: em
2018, 78% dos empregados de meio
período eram mulheres, e quase
uma em cada três mulheres tinha
um emprego de meio período.^8 Esse
tipo de contrato predomina em pro-
fissões altamente feminizadas do se-
tor de serviços (limpeza, restauran-
tes, varejo, saúde etc.). Como corrigir
essa política de igualdade profissio-
nal com dois pesos e duas medidas?
Delphine Remy-Boutang considera o
empreendedorismo uma forma de
sair da precariedade: “Muitas mu-
lheres ocupam funções que vão de-
saparecer: operadoras de caixa, por
exemplo. Elas precisam de ajuda pa-
ra fazer sua transformação digital”.
Em 2018, 78% dos em-
pregados de meio perío-
do eram mulheres, e
quase uma em cada três
mulheres tinha um em-
prego de meio período
As preferências
ideológicas dessas
mulheres as levam a
apoiar reformas que
prejudicam a grande
maioria de suas
semelhantes
.