Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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8 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


Periferias de São Paulo:


conjuntura e pós-pandemia


O Brasil entrará em 2021 com aproximadamente 180 mil mortes ocasionadas pela Covid-19, a maioria nas periferias.
Até novembro de 2020, entre 15 mil e 20 mil pessoas haviam morrido por causa da doença nas periferias paulistanas.
Há um evidente entrelaçamento entre cidade, sociedade e pandemia. Pensar a cidade que queremos levando em conta
o caos em que estamos é o desafio imediato que se coloca para os setores progressistas da sociedade e para
moradoras e moradores das periferias

POR TIARAJU PABLO D’ANDREA*

PENSAR A CIDADE QUE QUEREMOS É PENSAR A SOCIEDADE QUE QUEREMOS


AS CONDIÇÕES DE
PRODUÇÃO DE UMA TRAGÉDIA^1
Para compreender a aterradora
quantidade de vítimas do novo coro-
navírus é necessário dar um passo
atrás no tempo. No momento ime-
diatamente anterior à chegada do ví-
rus ao Brasil, pelo menos quatro cri-
ses estavam postas: econômica,
política, social e sanitária. Essas cri-
ses foram desencadeadas por uma
série de decisões políticas e tiveram
por desdobramento a explosão do
número de mortes.
Sobre a crise econômica, cabe res-
saltar que já há alguns anos se verifi-
ca no país um processo de desindus-
trialização e desmonte da sociedade
salarial. O número de trabalhadores
informais e de desempregados sobe a
cada ano e os salários caem paulati-

namente. Entrelaçadas com esses
processos estão as reformas traba-
lhista e da Previdência, aprovadas em
um contexto pré-pandemia. Essas re-
formas fragilizaram ainda mais os
direitos sociais, incidindo direta-
mente na capacidade da população
de se proteger durante a pandemia.
A crise política se verifica desde o
começo da Operação Lava Jato, pas-
sando pelo golpe contra Dilma Rous-
seff e chegando aos dias atuais. A es-
calada autoritária capitaneada pelo
atual presidente ataca de maneira
aberta o mínimo de democracia e
institucionalidade construído por
gerações de lutadoras e lutadores.
Dentro dos paradoxos da democracia
burguesa brasileira, está o fato de a
população já não acreditar na possi-
bilidade de as eleições mudarem sua

vida, vide o número de abstenções,
brancos e nulos nas últimas eleições.
Antes da chegada do coronavírus,
uma crise social já se apresentava.
Esta foi resultado de uma série de de-
cisões políticas, tais como o desmon-
te do SUS; o desmonte da assistência
social; a instituição da PEC 95, que
limita os gastos em saúde e educa-
ção; a dispensa de 11 mil médicos
cubanos, entre outras. Todas essas
medidas agravaram a situação dos 14
milhões de pessoas que vivem na ex-
trema pobreza.
Por fim, uma crise sanitária já es-
tava em curso, expressa nos mais de
30 milhões de pessoas que sobrevi-
vem sem água encanada e nos mi-
lhões que vivem em favelas; nas defi-
ciências alimentares e de saúde da
população.

A letalidade da Covid-19 foi um
dos pontos de encontro das decisões
conjunturais tomadas pelos gover-
nos recentes com os problemas his-
tóricos e estruturais de nossa socie-
dade. Nesse âmbito, cabe destacar
que a dimensão da tragédia expressa
também as dificuldades organizati-
vas da classe trabalhadora atual-
mente, ainda na ressaca de diversas
derrotas. Se estivesse mais bem or-
ganizada, teria maior capacidade de
pressão sobre os governos.
Se analisada a dimensão territo-
rial do espraiamento do coronavírus
na cidade de São Paulo, conclui-se fa-
cilmente que foi nas periferias onde
ocorreu o maior número de mortes.
Se havia ainda algum véu que dificul-
tava a compreensão das desigualda-
des sociais no urbano, a pandemia
serviu quase como um artifício me-
todológico para o entendimento do
funcionamento das estruturas.

MAS, ENTÃO, O QUE É PERIFERIA?
Afinal, quando falamos de periferia,
do que estamos falando?^2 Na propo-
sição aqui defendida, periferia é um
vasto território composto pelos dis-
tritos localizados mais próximos dos
limites do município de São Paulo, a
norte, a sul, a leste e a oeste. Esse vas-
to território possui aproximadamen-
te 6,5 milhões de habitantes, com
uma forte presença negra e nordesti-
na, mas também composta por bran-
cos pobres, indígenas e imigrantes. A
diversidade de heranças culturais é
uma de suas marcas distintivas. No
entanto, no âmbito econômico, para
além de alguma diversidade de ren-
da, a imensa maioria da população
moradora das periferias vende sua
força de trabalho, sendo o local de
moradia da classe trabalhadora bra-
sileira. Estamos falando de garis, pe-
dreiros, porteiros, babás, emprega-
das domésticas, funcionários
públicos, estagiários, vendedores de
lojas, profissionais do telemarketing,
motoristas de aplicativos, entrega-

© Allan Cunha


Periferias foram as áreas das cidades que mais sofreram com a Covid-19. Comunidade Souza Ramos, São Paulo

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